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Interlúdio portenho

31/12/2010

K. é um jovem (na casa dos 40) e bem-sucedido escritor de língua alemã que vive em Buenos Aires com a mulher e a filha pequena, num apartamento tão amplo, belo e cinematográfico que não dispensa sequer um elevador de porta pantográfica que parece saído de “O bebê de Rosemary”. Eu não conheço K., nunca o encontrei, de modo que não saberia começar a explicar por que um jovem e bem-sucedido escritor suíço de língua alemã elegeu a capital argentina para viver, mergulhado num idioma que ele próprio – assim me dizem – não fala direito. Sequer li K., que jamais foi traduzido no Brasil e de quem ouvi falar apenas agora, já hospedado em sua casa, tornada imensamente vazia pelas férias africanas da família – sim, folheei alguns de seus livros na biblioteca, junto à lareira extemporânea, mas aqueles tomos podiam estar escritos em grego. Apesar de toda essa distância linguístico-existencial, a hospitalidade de K., por meio de amigos comuns, contribui decisivamente para tornar memorável minha passagem de ano portenha, entre dias que parecem querer competir com a temperatura dos ojos de bife fumegantes que alimentam meu corpo e noites frescas em que o vinho tinto torna-se subitamente inadiável e que podem terminar num magnífico galpão decadente de Almagro, chamado La Catedral, onde argentinos de vinte e poucos anos redescobrem as raízes do tango como os cariocas de vinte e poucos anos redescobriram há algum tempo o samba na Lapa. Ontem, caminhando pela Jorge Luis Borges até a Piazoleta Julio Cortázar, fui tomado por uma sensação de estranha familiaridade: sou estrangeiro, estrangeiro entre estrangeiros. Mas Heloisa estava ao meu lado, logo, existo. O futuro é uma página escrita em alemão diante de um escritor brasileiro que só fala português, inglês e, a cada minuto que passa, cada vez mais espanhol. E está bom assim. Obrigado, K. Um dia eu o leio, ou não, mas que 2011 venha de uma forma ou de outra, porque acho que finalmente estou pronto.

7 Comentários

  • foguete de luz 01/01/2011em21:37

    E “estar pronto”, caro escritor, já é um “portentoso” final infinito, pronto a ser “explorado”, para sempre “novos começos” e “certeiros amanhãs”! [… de preferência em Jardim…]

  • Elvira Madigan 02/01/2011em17:27

    Sérgio, há algum tempo não venho ao blog. Cheguei de férias e encontro a epígrafe de Oscar Wilde, escritor que adoro e é tão pouco prestigiado pelas bandas de cá. Se esse ano fosse data redonda relativa a ele eu ia te sugerir que toda semana o homenageasse com um de seus extraordinários aforismos.
    Quero te desejar um super 2011. Exista por longos anos, com Heloisa. E continue a nos oferecer pistas e discussões maravilhosas que encontro aqui. Só hoje anotei três, entre as quais o último do McEwan que eu ainda não tinha me animado a ler. É um dos meus escritores contemporâneos favoritos(li nas férias “O jardim de cimento”).

  • Afonso 03/01/2011em11:20

    Que estejamos todos prontos – para assim renascer…

  • Licia 03/01/2011em15:57

    É a segunda vez que leio um texto seu que fala de elevadores antigos, como o de “O bebê de Rosemary”. A primeira foi no “Elza, a garota”, não me lembro direito em que parte. É um filme muito bom mesmo.

    • sergiorodrigues 03/01/2011em18:50

      Bem observado, Licia. No “Elza”, o prédio da Camila na Glória tem um desses, e certa manhã a comparação com “O bebê de Rosemary” ocorre a Molina. Grande filme, mas acho que meu fascínio é mesmo com o elevador. Um abraço.

  • Sérgio Karam 03/01/2011em19:07

    Sergião: Grande 2011 pra você! Se estiver mesmo em BsAs, compre os Cuentos Reunidos (ou Completos?) do Fogwill, edição da Alfaguara. Você não vai se arrepender! Abraços!

  • Norberto 04/01/2011em06:37

    Que tal um post sobre Euclides da Cunha?