K. é um jovem (na casa dos 40) e bem-sucedido escritor de língua alemã que vive em Buenos Aires com a mulher e a filha pequena, num apartamento tão amplo, belo e cinematográfico que não dispensa sequer um elevador de porta pantográfica que parece saído de “O bebê de Rosemary”. Eu não conheço K., nunca o encontrei, de modo que não saberia começar a explicar por que um jovem e bem-sucedido escritor suíço de língua alemã elegeu a capital argentina para viver, mergulhado num idioma que ele próprio – assim me dizem – não fala direito. Sequer li K., que jamais foi traduzido no Brasil e de quem ouvi falar apenas agora, já hospedado em sua casa, tornada imensamente vazia pelas férias africanas da família – sim, folheei alguns de seus livros na biblioteca, junto à lareira extemporânea, mas aqueles tomos podiam estar escritos em grego. Apesar de toda essa distância linguístico-existencial, a hospitalidade de K., por meio de amigos comuns, contribui decisivamente para tornar memorável minha passagem de ano portenha, entre dias que parecem querer competir com a temperatura dos ojos de bife fumegantes que alimentam meu corpo e noites frescas em que o vinho tinto torna-se subitamente inadiável e que podem terminar num magnífico galpão decadente de Almagro, chamado La Catedral, onde argentinos de vinte e poucos anos redescobrem as raízes do tango como os cariocas de vinte e poucos anos redescobriram há algum tempo o samba na Lapa. Ontem, caminhando pela Jorge Luis Borges até a Piazoleta Julio Cortázar, fui tomado por uma sensação de estranha familiaridade: sou estrangeiro, estrangeiro entre estrangeiros. Mas Heloisa estava ao meu lado, logo, existo. O futuro é uma página escrita em alemão diante de um escritor brasileiro que só fala português, inglês e, a cada minuto que passa, cada vez mais espanhol. E está bom assim. Obrigado, K. Um dia eu o leio, ou não, mas que 2011 venha de uma forma ou de outra, porque acho que finalmente estou pronto.
7 Comentários
E “estar pronto”, caro escritor, já é um “portentoso” final infinito, pronto a ser “explorado”, para sempre “novos começos” e “certeiros amanhãs”! [… de preferência em Jardim…]
Sérgio, há algum tempo não venho ao blog. Cheguei de férias e encontro a epígrafe de Oscar Wilde, escritor que adoro e é tão pouco prestigiado pelas bandas de cá. Se esse ano fosse data redonda relativa a ele eu ia te sugerir que toda semana o homenageasse com um de seus extraordinários aforismos.
Quero te desejar um super 2011. Exista por longos anos, com Heloisa. E continue a nos oferecer pistas e discussões maravilhosas que encontro aqui. Só hoje anotei três, entre as quais o último do McEwan que eu ainda não tinha me animado a ler. É um dos meus escritores contemporâneos favoritos(li nas férias “O jardim de cimento”).
Que estejamos todos prontos – para assim renascer…
É a segunda vez que leio um texto seu que fala de elevadores antigos, como o de “O bebê de Rosemary”. A primeira foi no “Elza, a garota”, não me lembro direito em que parte. É um filme muito bom mesmo.
Bem observado, Licia. No “Elza”, o prédio da Camila na Glória tem um desses, e certa manhã a comparação com “O bebê de Rosemary” ocorre a Molina. Grande filme, mas acho que meu fascínio é mesmo com o elevador. Um abraço.
Sergião: Grande 2011 pra você! Se estiver mesmo em BsAs, compre os Cuentos Reunidos (ou Completos?) do Fogwill, edição da Alfaguara. Você não vai se arrepender! Abraços!
Que tal um post sobre Euclides da Cunha?