Revitalização da boa e velha arte narrativa. Capacidade de prender o leitor na história que se desenrola nas (muitas e muitas) páginas de um romance-tijolo sem fazer concessões às fórmulas do best-seller. Ambição de dar conta de um momento histórico em seus diversos aspectos por meio de personagens fortes dotados de apetites que o leitor reconhece, a começar pelo apetite propriamente dito. Tudo isso poderia ser dito – e vem sendo dito – de Jonathan Franzen, autor do mais-que-festejado “Liberdade”. Tudo isso pode ser dito com mais propriedade de James Ellroy, a principal atração da Flip que começa daqui a três semanas.
Isso não quer dizer que eles sejam parecidos. Nem de longe, embora ambos se declarem fãs e devedores do grande mestre do romance oitocentista, Leon Tolstoi. Quer dizer apenas que mérito e reconhecimento são curvas independentes, que se encontram e se desencontram de modo imprevisível. Ellroy é mais fragmentado, nervoso, experimental, paranoico, sujo e desbocado que seu compatriota que vem sendo chamado de gênio. Em vez de aspirar a um romance redondo, produz narrativas prismáticas e cheias de arestas que incorporam personagens da vida real, notícias de jornal e relatórios de legistas. Despreza a classe média “normal” que é o pasto de Franzen e se concentra em marginais e poderosos, extremos que se tocam. Parte de um gênero que os críticos de nariz em pé consideram menor, a literatura policial, e, embora seja preciso esquartejá-lo para fazer sua abordagem eminentemente política caber nesse escaninho, paga um imposto alto por ter sangue e armas nas capas de seus livros.
Não é só. Distante da imagem de bom moço de Franzen, Ellroy é um ex-detento e ex-drogado para quem a literatura foi de fato uma boia na tempestade – dado biográfico que, ao mesmo tempo que ajuda em sua divulgação em nossos tempos de culto à personalidade, contribui para folclorizá-lo e diminuí-lo como artista. Além do mais, parece meio maluco e já andou se declarando “o maior escritor policial que jamais viveu”. Antipático, não?
Com tudo isso, considero provável que Ellroy – e não Franzen – continue sendo lido daqui a cem anos, caso ainda haja quem leia alguma coisa daqui a cem anos. Do elenco da Flip 2011 e no âmbito mais restrito da lusofonia, apenas João Ubaldo Ribeiro tem uma obra com ambição, maturidade e peso equivalentes, do tipo que não abre mão do valor supremo da literatura – contar boas histórias – mas, para tanto, faz avançar as fronteiras das linguagens estabelecidas. Vejo pontos de contato entre “Tabloide americano”, romance de Ellroy passado na era Kennedy, e “Viva o povo brasileiro”, o mais importante romance brasileiro das últimas três décadas. São duas epopeias desencantadas que podem ser lidas ao mesmo tempo como ode e réquiem a um certo espírito de nacionalidade. Mas isso fica como tema para outra ocasião.
James Ellroy desembarcará no Brasil a bordo de um romance de 960 páginas, o recém-lançado “Sangue errante” (Record, tradução de Ivanir Alves Calado), que mais uma vez mistura personagens reais e inventados para injetar ficção num momento crítico da história americana, o período de reação conservadora entre 1968 e 1972, após os assassinatos de Martin Luther King e Robert Kennedy. No entanto, a quem estiver interessado em conhecer o autor e achar, compreensivelmente, que o tempo até a Flip é curto demais para encarar tão fabuloso catatau, recomendo como porta de entrada “Dália negra”, seu primeiro romance de sucesso, lançado em 1987 (aqui disponível em edição de 2006 da mesma Record, com tradução de Claudia Sant’Ana). Tem cerca de metade do tamanho de “Sangue errante” e, escrito para exorcizar a obsessão com sua mãe, assassinada em circunstâncias obscuras quando ele tinha dez anos, começa assim:
Jamais a conheci em vida. Ela existe para mim através dos outros, como prova dos caminhos em que a sua morte os lançou. Voltando ao passado, buscando apenas fatos, eu a reconstruí como uma menina triste e uma prostituta, quando muito alguém-que-poderia-ter-sido, rótulo que também poderia se aplicar a mim. Gostaria de lhe ter concedido um final anônimo, de tê-la relegado a breves palavras de detetive, num relatório sumário de homicídio, com cópia carbono para o legista, e mais papelada para enterrá-la em vala comum. O único erro em relação a esse desejo é que ela não teria gostado que fosse assim. Por mais brutais que sejam os fatos, ela gostaria que fossem todos revelados. E como lhe devo muito e sou o único que sabe a história inteira, incumbi-me de escrever essas memórias.
8 Comentários
Grande SR. Fascinante o cotejo entre VPB e TA, e gostaria que você realmente tratasse o tema em outra vez.
Também quero esclarecer que Dália negra é de fato o primeiro componente do “Quarteto de Los Angeles” (completado por O grande deserto; L. A. – Cidade proibida; e Jazz branco), mas que a estreia de James Ellroy foi com Brown’s requiem (1981), e que antes do QLA ainda houve Clandestine (1982), Killer on the road (originalmente Silent terror, 1986) e a trilogia do detetive psicótico Lloyd Hopkins: Sangue na lua (1984), Por causa da noite (1984?) e Morro do suicídio (1985?). Dália negra, como você postou, é de 87 lá. Aliás, todas as datas que pus também são as das primeiras edições americanas. Por fim, dentre os títulos que cito em inglês tem um outro lançado aqui, mas não me lembro qual é.
Um abração.
Perfeita a observação, Thiago. De fato, Dália negra está longe de ser o primeiro romance de Ellroy, foi apenas o primeiro a fazer sucesso de público e crítica e jogar sua carreira num novo patamar. Obrigado e um abraço.
Sim, Ellroy mexe mais com o leitor que Franzen, deixa a pessoa de orelha em pé, vira do avesso e mostra a América profunda, não a morna classe média, que parece a ponto de explodir, mas que sempre se volta pros seus velhos arranjos. Excelente comparação entre Ubaldo e Ellroy, já que Ubaldo também é mal-visto pelos que implicam com seu lado cronista. E Ubaldo, se não é um cachorrão, também dá suas mordidas. Os dois enchem os olhos do leitor, é de fazer a pessoa babar.
sérgio,
Autoridade “coatora” existe?
Links e Notícias da Semana #41
Acho que o título que o Thiago abaixo não se recorda é o Noturnos de Hollywood. É uma compilação com uns quatro ou cinco contos e uma novelinha mais longa. Nesta novela, “O Blues de Dick Contino” (se não me engano), Ellroy já utilizou esse recurso de misturar fatos com ficção — o personagem principal da trama é o músico/ator americano Dick Contino, que de fato existiu… quero dizer, se a Wikipedia estiver certa, então Dick está vivo ainda. Muito boa a novela.
Bom, para falar mais um pouco do Dick Contino, e ilustrar esse recurso do Ellroy de costurar histórias a partir de alguns trapos de verdade, segue um trechinho interessante tirado da página da Wikipedia que fala do Dick Contino:
“(…) James Ellroy wrote a novella, Dick Contino’s Blues, which is a mini-memoir and crime story based on Contino’s experiences as a struggling artist after the war. It is included in the 1994 Ellroy short story collection Hollywood Nocturnes. A version appeared in issue number 46 of Granta magazine (Winter 1994) along with several photographs of Contino and the author. Ellroy also penned a short story entitled Hollywood Shakedown which appeared in his collected work “Crime Wave” and featured Contino as the central character. The story is entirely fictitious as it features numerous incidents of violence and murder which Contino had never been linked with or accused of in reality. (…)”
Oi, Fabricio, um abraço.
Fucei a Estante Virtual, e o tal livro chama-se Viagem sem volta, tradução de Killer on the road lançada aqui em 1988 pela Nova Cultural.
Noturnos de Hollywood, assim como as memórias Meus lugares escuros, a miscelânea Onda de crimes e a trilogia -Tablóide americano-Seis mil em espécie-Sangue errante-, é posterior ao “Quarteto de Los Angeles”.
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