“O cinema não é uma arte superior aos quadrinhos”, disse Joe Sacco, astro solo da mesa iniciada ao meio-dia, que terminou por ser tão informativa quanto agradável. Onde se lê cinema, pode-se ler também literatura, jornalismo e fotografia, linguagens com as quais ele dialoga em sua importante, ambiciosa e original obra de HQ. Nascido em Malta em 1960 e criado nos Estados Unidos, Sacco é hoje o maior nome do jornalismo em quadrinhos, autor de livros como os que escreveu sobre a questão palestina, entre eles “Notas sobre Gaza” e “Palestina: uma nação ocupada”. Entrevistado pelo jornalista Alexandre Agabiti Fernandez, que conduziu bem a conversa, apesar de certa tendência à prolixidade, Sacco não fugiu de nenhuma das perguntas e falou sobre seu método de trabalho, suas influências e até da ocasião em que, intimidado pelo peso do jornalismo americano tradicional, se autocensurou ao fazer um trabalho para a revista “Time”. “Pensei demais em como a ‘Time’ diria certas coisas e acabei insatisfeito com o resultado”. Abaixo, um apanhado de suas declarações:
Vantagens e desvantagens dos quadrinhos como veículo de jornalismo: “O que eu faço é jornalismo, e como tal precisa ter precisão. Mas com quadrinhos você pode viajar no tempo com rapidez, retratar o passado com precisão, se tiver uma boa pesquisa fotográfica e entrevistar as pessoas certas, fazendo as perguntas certas. Tenho muito respeito pelo fotojornalismo, mas ele trabalha com a ideia da foto que resuma toda uma situação. Quando se trabalha com múltiplas imagens, há muito mais que pode ser dito. Em prosa também se pode dizer, mas sinto que os quadrinhos valorizam mais a recorrência dos detalhes. Por exemplo, se houve uma enchente catastrófica em determinado lugar, o escritor vai mencionar isso uma vez. Nos quadrinhos, a lama vai sempre estar lá, no plano de fundo, mesmo que a cena principal seja, digamos, uma conversa sobre futebol. Um escritor não repete o tempo todo: “A propósito, havia lama no fundo da cena”. Nos quadrinhos, a lama vai estar sempre lá. (…) Um problema é o tempo que leva para produzir. O jornalismo normalmente trabalha com a ideia da instantaneidade. Eu, quando volto para o escritório após levantar todas as informações, penso: ‘Bom, já sei o que vou fazer nos próximos quatro anos’.”
Sobre a recorrência da guerra em seu trabalho: “Por que a guerra? É uma pergunta que me faço todos os dias. Não é a guerra em si que me interessa, tiros e explosões, mesmo porque isso é perigoso demais para mim. Já passei um tempo no Iraque com marines americanos, mas sinto que todas as histórias sobre soldados são no fundo a mesma história, uma história de camaradagem, de como eles se importam mais uns com os outros do que com a missão… O que me interessa são os civis, as pessoas que tentam tocar a vida no dia a dia em meio à tragédia. (…) Quero trabalhar com outras dimensões de conflito. Sinto que há um momento em que termina a história e começa a psicologia humana. Ainda não sei como transformar isso em quadrinhos, mas quero ir nessa direção.”
Sobre suas influências artísticas: “Uma das minhas influências é o pintor flamengo Brueghel, o Velho. Você vê um quadro dele e entende como as pessoas viviam na Bélgica da época medieval, gente cortando lenha e tocando a vida cotidiana. É claro que também se percebe no meu traço a influência de Robert Crumb, que admiro muito. No texto, foi importante para mim o jornalismo de George Orwell. Hunter S. Thompson é outra influência: acho que nem tinha consciência disso no momento, mas a ideia de que é possível escrever sobre assuntos sérios de forma irreverente e empolgante, como ele fez com a política americana, me marcou.”
Sobre seu processo criativo: “No local, não desenho muito, só faço sketches nos casos em que não é permitido fotografar. Tiro muitas fotos, converso com as pessoas, tomo notas. Quando volto para casa, meu método é escrever então um roteiro completo. Adoro escrever, mas nunca sei se um roteiro vai me tomar seis semanas ou seis meses. Quando ele fica pronto finalmente, começo a desenhar quadro por quadro. É um trabalho lento, mas este pelo menos eu sei quanto tempo me tomará. Nunca faço rascunhos, como muitos desenhistas, porque acho chato. Desenho direto.”
Sobre o preconceito contra a HQ e a possibilidade de virar cineasta “O preconceito contra os quadrinhos, como um meio identificado apenas com a cultura infanto-juvenil, existia, mas isso foi resolvido muito tempo atrás, quando Art Spiegelman lançou ‘Maus’. Meu trabalho é feito para adultos, e hoje há muita gente fazendo coisas interessantes nessa área, quase todas surgidas ao mesmo tempo, na virada do século. É uma boa época para ser quadrinista. Se eu penso em fazer cinema? Não. Levaria muito tempo para aprender a linguagem de um novo meio e ainda teria que trabalhar com um monte de pessoas. Mas eu não sinto essa necessidade, não acho que o filme seja uma forma de arte superior aos quadrinhos. Mais popular, sem dúvida, mas não superior. Sou um quadrinista, é o que faço.”
Um comentário
fantástica a visão de Joe Sacco sobre os quadrinhos.