Do escritor inglês Jonathan Coe, 45 anos, só li o romance que costuma ser considerado sua obra-prima, “O legado da família Winshaw” (Record, 2002, tradução de Celina Cavalcante Falck). Um livro divertido, despudoradamente farsesco, em que as histórias de variados personagens se cruzam numa trama complicada e não desprovida de artificialismo, para compor uma sátira feroz da Grã-Bretanha de Margaret Thatcher. Um bom romance cujo aparente defeito – uma certa candura ou confiança excessiva no poder do contador de histórias – termina por ser sua maior qualidade, ou pelo menos aquilo que o distingue no panorama literário atual. Não sei se fui claro: é evidente que Coe tem ambições, tanto estéticas quanto políticas, mas não cabe bem no figurino do literato. Provavelmente não é sequer um grande escritor, mas está tão empenhado em envolver o leitor em suas fabulações e comentar com ele o mundo lá fora – e não a própria literatura, o que o diferencia de boa parte do pós-modernismo em que se alinha – que acaba tendo uma vitalidade curiosa.
(Será que influi em minha simpatia o fato de Coe ter se revelado um sujeito sensato, afável e sem frescura quando nos conhecemos na Flip de 2004, em que fiz a mediação da mesa que ele dividia com o presunçoso Jeffrey Eugenides? Talvez. Isso não invalida nada, mas é sempre bom deixar explícito o risco de parti pris.)
“A casa do sono” (Record, tradução de Marcello Rolemberg, 400 páginas, R$ 49,90), que a editora apresenta como o “novo” romance de Jonathan Coe, só é novo aqui: foi lançado em 1998, logo depois da “Família Winshaw”. Conta as histórias cruzadas de estudantes que dividiram uma república nos anos 80 e se reencontram, mais de dez anos depois, na mesma casa, transformada agora numa clínica especializada em distúrbios do sono.
— Conte-me sobre seus sonhos — Gregory disse uma vez para Sarah, sentado naquele mesmo terraço, em uma manhã clara de novembro, muitos anos antes. — Conte-me há quanto tempo isso vem acontecendo.
Sarah aqueceu as mãos na caneca, tremendo um pouquinho por causa da brisa do oceano, e olhou para ele com carinho. Isso foi nos primeiros meses do relacionamento deles, muito antes de eles se distanciarem. Ainda achava, naqueles dias, que ele podia ser muito gentil. Ela ainda o considerava um homem sábio e compreensivo. Sentada naquele terraço, apoiada, como que por instinto, nele, com os joelhos tocando os dele, sentia que suas ansiedades começavam a se dissolver. Ele esquecia que eles vinham discutindo com mais freqüência, recentemente, e a respeito de coisas cada vez menores. Em relação ao sexo, ela repetia para si que ele melhoraria com o tempo. Tentava ignorar o fato de que, enquanto falava com Gregory, ele escrevia o que ela dizia em um caderno que trazia escrito na capa “PROBLEMAS PSICOLÓGICOS DE SARAH”.
De qualquer forma, ela estava excitada, não havia como negar: eles acabavam de fazer uma importante descoberta. Haviam encontrado uma explicação para algo que vinha confundindo Sarah nos últimos cinco anos ou mais. Eles haviam descoberto, naquela mesma manhã, que ela não conseguia notara diferença entre seus sonhos e as memórias de sua vida real.
— Conte-me sobre esses sonhos — Gregory estava dizendo. — Conte-me há quanto tempo isso vem acontecendo.
E Sarah tomou um longo fôlego, e contou para ele.
* * *
Isso começara, ela disse, quando tinha 14 ou 15 anos. Estava infeliz na escola, freqüentemente tinha problemas para terminar seus deveres de casa, e tinha um medo especial de seu professor de História, um certo Sr. Mountjoy. No fim de uma noite difícil, percebendo-se completamente incapaz de escrever um artigo sobre as causas da Guerra Franco-Prussiana — um artigo que ela teria de ler em voz alta na aula do dia seguinte —, ela fora para a cama aos prantos, disposta, em seu desespero, a faltar a aula no dia seguinte ou fingir estar doente. Mas, em vez disso, ela acordou com uma sensação imediata de leveza, com uma lembrança pura de ter escrito o artigo, e tendo escrito, ela sabia, em alto nível: ela conseguia visualizá-lo no livro de exercícios, quatro páginas e meia, diversas rasuras na página três, mas ainda assim limpinhas e apresentáveis, o título sublinhado duas vezes com caneta vermelha e com algumas notas de rodapé para dar a ele um aspecto acadêmico. E foi só às 11h30 daquele mesmo dia, na primeira aula após o intervalo, quando ela abriu o livro de exercícios pouco antes de ser chamada para ler diante da turma, que ela descobriu que o artigo, inacreditavelmente, não existia.
Aquela foi a conclusão a que ela chegou, no fim: primeiro, pensou que devia ter cometido um engano tolo e escrito o artigo em outro livro, e ela procurou freneticamente em sua mochila, nos livros de inglês, geografia e francês, com o pânico tornando-se tão visível e audível que o Sr. Mountjoy teve de interromper quem estava lendo e perguntar qual era o problema. Ela explicou que devia ter deixado o artigo no armário e pediu permissão para ir buscá-lo: a permissão foi dada; mas a busca em seus livros de matemática, alemão, física e biologia no pouco habitual silêncio da sala de armários vazia ainda não havia produzido nenhum resultado prático; e então, tomada por uma confusão que beirava a histeria, ela fugiu do prédio da escola de uma vez e correu para o parque municipal onde, com as mãos na cabeça, tentou em vão encontrar o sentido dessa seqüência de eventos e começou a pensar, com seriedade, pela primeira vez, se estava ficando louca. O artigo nunca apareceu e ela foi colocada de castigo naquela semana (e o Sr. Mountjoy não acreditou em uma palavra da história dela): e se todos esqueceram aquele incidente, Sarah não esqueceu, e nunca mais falou sobre ele, embora tenha passado por outras situações desagradáveis semelhantes em intervalos irregulares nos anos seguintes. Uma vez, alguns semestres depois, repreendera amargamente sua melhor amiga, Angela, que não apareceu na hora em um encontro marcado do lado de fora da piscina. Angela negou que o tal encontro havia sido marcado, e uma discussão levou a um desentendimento entre as duas que nunca foi bem resolvido. Houve uma outra ocasião, também, quando Sarah confundiu sua família ao parar na farmácia no caminho da escola para casa e trazer — em resposta, ela insistia, a um pedido específico de sua mãe — seis tubos de pasta de dente para fumantes, dez sachês de pot-pourri e um estoque de supositórios para pelo menos um ano.
Embora muito envergonhada para admitir isso até para os amigos mais próximos ou para a família, Sarah se convenceu de que era a vítima das ilusões: vôos vívidos e incontroláveis da imaginação que, em um primeiro momento, ela não tinha por que conectar com seus sonhos (já que os sonhos dos quais conseguia se lembrar normalmente tinham pouco a ver com a realidade e tendiam, como os de todo mundo, ao grotesco e ao fantástico — ela tinha muitos pesadelos com cobras, por exemplo, e outros ainda piores com sapos). Foi apenas naquela manhã no terraço, com a ajuda de Gregory, que a verdade realmente veio à tona. E embora Sarah estivesse chateada com a discussão que eles haviam tido na noite anterior, por outro lado estava agradecida por: porque foi aquela discussão, e suas estranhas conseqüências, que finalmente destrancaram a porta do mistério.
4 Comentários
eu gostei muitisimo da foto
Sérgio,
o lançamento do “novo” livro é bem-vindo… antes tarde do que nunca…
Estava sentindo falta do “Primeira Mão”…
Comecei agora a pouco “Bem-vindo ao clube” do Coe. Estou numa cruzada para conhecer os 4 principais jonathans da literatura de língua inglesa contemporânea: Lethem, Coe, Franzen e Safran Foer.
Oi Sérgio,
Acabei de comprar “A casa do sono”, e só não comecei a lê-lo ainda por causa de um livro que venho terminando (de ler, não de escrever). Tenho os outros 3 livros de Coe, publicados no Brasil; “O Legado…”, “Bem-Vindo ao Clube” e “O Círculo Fechado”, e considero Coe, sim, um escritor maior em meio aos nomes da literatura atual. Nacional e estrangeira. “Bem-Vindo ao Clube” é uma obra-prima, na minha modesta opinião. Quanto à citação acima, de George Orwell, não considero Jonathan Coe um modismo. Pelo menos não no Brasil. Modismos por acá, em terras brasileiras, são “escribas” que relatam suas experiências sexuais e assim tornam-se best-seller.
Tenho, entretanto, 29, o que ainda me inclui – por meros 1 ano, no argumento de Orwell. Mas ainda assim, eu o nego…rs
Um abraço,
R. Brasil