Juan Carlos Onetti (1909-1994) é um dos menos conhecidos dos grandes escritores latino-americanos. Eu mesmo confesso que demorei demais a conhecê-lo. Mas que é um dos maiores – para muita gente mais nervosa no manejo dos superlativos, o maior – ficou claro para mim ao ler o romance “A vida breve”, na edição de 2004 da editora Planeta, com tradução impecável de Josely Vianna Baptista, que agora nos dá esses “47 contos de Juan Carlos Onetti” (Companhia das Letras, 448 páginas, R$ 42). O mais recente título da coleção de contos da Companhia – aquela com belas capas em estilo retrô de Jeff Fisher – traz todas as histórias curtas escritas por Onetti ao longo de seis décadas, de 1933, em Montevidéu, onde nasceu, a 1993, em Madri, cidade que adotou após ser exilado pelo regime militar, em 1975. Mestre da sutileza e do desencanto, com suas narrativas em que “nada acontece” ocupando quase programaticamente o pólo oposto ao das pirotecnias verbais e simbólicas do chamado realismo mágico, é até compreensível que esse uruguaio que se dividiu entre o jornalismo e a publicidade – sem jamais deixar de ser ficcionista – tenha sido mais lento que tantos de seus contemporâneos na corrida pela consagração. Mais compreensível ainda é que seu nome vá ficando cada vez maior, à medida que passam as modas. Leia abaixo o conto “Amanhã será outro dia”:
A chuva deixara os bulevares quase vazios e só restava gente agrupada no café envidraçado onde, havia meses, não a deixavam entrar.
Sonia, de pé no vestíbulo da casa vazia, viu que a chuva passava, fatigada, a manso chuvisco, viu-a cessar enquanto aumentava o frio do vento, e pensou que aquilo era sinal de boa sorte. Um pouco mais longe, do outro lado do amplo passeio, as luzes da cidade começavam a se acender. A noite tinha início, e, respirando o aroma tristonho de seu casaco molhado, Sonia pensou que também a esperança tinha início. Sorriu, sem realmente acreditar, como uma menina para a qual recitaram uma história já ouvida e inverossímil.
Apalpou novamente a crespa peruca loira e com grande cuidado — tinha as unhas muito compridas — foi esticando as meias ensopadas presas pelas ligas.
Sentiu fome de novo e lembrou que tinha um sanduíche de presunto no bolso. Mas não podia estragar o desenho da boca que fizera com batom e com tanto cuidado. Também lembrou que até o fim do mês estava em ordem com a polícia e obrigou-se a caminhar, aproximando-se da beira das calçadas para sorrir para os carros, rebolar e parar, fingindo procurar alguma coisa na bolsa enorme. Mas nada, ninguém, e sem dinheiro para tentar a sorte em bares onde ainda a deixavam entrar.
Era noite e depois madrugada no bairro sujo da grande cidade. E Sonia, já sem fome, quase sem esperanças, continuava caminhando sobre a dor dos sapatos de salto agulha.
Repetiram-se os breves diálogos com os homens que passavam.
— Vamos. Você vem?
— Vá tomar no cu.
— Gosto disso. Eu também posso botar se quiser experimentar.
Homens e homens e seu asco por eles. A luz limpa ameaçava chegar do porto e as outras iam se apagando. Subiu as escadas pisando com as meias de seda caras. Abriu a porta manchada e acendeu a luz do teto. O rapaz, que sentou- se na cama, perguntou com medo:
— Como foi?
— Uma merda, boneca. Estou faminta. Acho que tínhamos uma lata de sardinha e sobrou pão do café-da-manhã.
O menino, moreno e magro, levantou-se da cama e começou a remexer no armário; disse com voz de mimo e queixa:
— Você ainda não me beijou.
— Agora.
Diante do espelho Sonia tirou a peruca e acariciou as faces.
— Outra vez barbuda.
Depois tirou a roupa e ficou olhando os peitos inchados com silicone e o sexo que penderia trêmulo e inútil mesmo depois das sardinhas.
17 Comentários
Já estava na hora de publicarem o Onetti.
O “A vida é Breve” é considerado pelo próprio Onetti como sua obra mais importante. Mas para ele prefere “El Astillero”.
Juan Carlos Onetti é meu escritor latino-americano do coração. É maravilhoso, tem romances belíssimos, e consegue ser ainda melhor no conto. Esse livro tem o relato ‘Jacob e o outro’ que é o mais perfeito que já li. E há outras preciosidades nesse livro. Ao lado de Juan Rulfo e García Márquez, Onetti é o hermano que releio com mais devoção. Ele é impressionante, não há outra palavra para descrevê-lo.
Sabe, Sérgio, uma vez li sei lá onde, num blog talvez, que o romance policial americano tem mais prestígio que o inglês por ser considerado mais autêntico, mais verdadeiro. O autor do comentário dizia que, aos olhos da modernidade, havia mais realismo numa morte de um cagüete miserável em um beco urinado do centro que o crime de um bacana, encontrado em sua mansão, morto por uma adaga malaia. Achei a objeção excelente. Quando comecei a ler este conto, pensei: lá vem de novo outro escritor bem nascido, com vergonha de sua origem, com um medo danado de ser considerado um elitista, que confunde elegância com elitismo, que deseja compor com as classes baixas, para se mostrar sensível, solidário e nada burguês, mas… Supresa. Em frases tão breves, tantos significados, tanto drama humano. Me pego emocionado, o que há muito não me acontecia, talvez por insensibilidade, talvez por embotamento, ignorância. Te devo esta, cara.
Xi, se o Jatobá gosta…
Se o Jatobá gosta… é porque é bom. E acrescenta aí: o Saint-Clair também gosta – de fato, adora. Onetti é uma aula: todo pretendente a escritor tinha que obrigatoriamente ler seus livros, pra aprender a escrever. Comprei um dia desses o “A vida é breve”, novo, por R$9,90 nas Lojas Americanas. Onetti é uma epifania.
Corrigindo: “A vida breve”, sem verbo de ligação.
Acresceta ai a lista de auto-pesentes… e o natal chegando…
Há um livraria aqui em Belém que está com uma promoção de 50% até o dia 24, 22:00… é lá que eu estou me acabando, ou melhor, acabando meu dinheiro…
Sabem o que mais me deixa feliz: É o fato de que os shopings estão abarrotados de pessoas a ponto de nem se poder andar… e eu ando de braços abertos entre as estantes de livros… vou comprar muitos para mim, uns dois pra namorada e mais alguns para amigos do peito… que, diga-se de passagem, são pouquíssimos…
Abraço a todos
Ops, acrescenta…
Saint-Clair acha que ser pobre é bonito.
Vicicius, Garcia Marques?
Eu pensei que te conhecia.
Acho que não foi isso que li no seu blog há uns meses atrás. Enfim…
Não volto lá por que, sei lá. Não dá vontade.
É meu latino favorito também, ao lado de Ernesto Sabato.
Clarice, a resenha sobre a obra de GGM no meu blog é positiva. Eu amo Gabriel García Márquez. Seria uma pessoa totalmente diferente sem ele. Hoje mesmo reli o ‘Putas Tristes’ e é simplesmente maravilhoso. Na prosa, na construção das personagens, no universo poético, GGM sobra e é mestre soberano. Abs,
ainda não li este escritor, dos latino-americanos a minha maior descoberta, há alguns anos, foi o Sabato, que já foi citado pelo Jonas. “Sobre hérois e tumbas” foi realmente perturbador assim como o livro “O Túnel” e o livro de memórias “Antes do fim” foi uma maneira de conhecer melhor este escritor e “seus fantasmas”. Acho que ele ainda não apareceu aqui na coluna do Sérgio, ou estou enganado?
Até que enfim hein finalmente lançaram todos os contos desse escritor maravilhoso…
Só uma coisa: ninguém aqui falou do “Junta-Cadáveres”(que também tem em versão nacional pela Plante, se não me engano). Alguém já leu?
Vinicius,
Enganei de Blog. Dele eu li o “Relato de um Náufrago” e o “O Outono do Pariarca”. São os dois que eu gosto. Mas ele não está no meu pantheon. Vou rever já que você diz que gosta. Puxa! Se ele lesse isto: “Eu amo Gabriel García Márquez. Seria uma pessoa totalmente diferente sem ele. Hoje mesmo reli…”…
É o retorno que todo escritor sonha em ter.
No “O Túnel” do Sabato neura do narrador chega a um paroxismo que chega a ser engraçado. Já “Sobre Heróis e Tumbas”, o Sabato mesmo disse que se encontrasse a Alejandra mudaria de calçada.
preciso urgente saber do conto do Juan carlos onetti
un sueño realizado .. não consegui entender ..
por favor me ajudem