O boliviano Juan Claudio Lechín, 50 anos, está deixando de ser inédito no Brasil: lança hoje, na Feira de Porto Alegre, seu romance “A gula do beija-flor” (Bertrand Brasil, tradução de Ernani Ssó, 332 páginas, preço a definir). Premiado na Bolívia, o livro acompanha um congresso secreto de grandes especialistas em sedução e sexo, organizado em La Paz pelo protagonista, dom Juan, homem idoso – e velha estrela do sindicalismo – que se recusa a entregar os pontos. Cada capítulo traz o relato picante de um dos congressistas, histórias que dom Juan passa a usar em benefício próprio para tentar seduzir Maya, a estudante de jornalismo que o entrevista. E o que poderia ser apenas um compêndio de machismo latino-americano acaba virando, por engenho do autor, um tributo à esperteza feminina. Não estará errado quem lê-lo ainda como painel das relações sociais num país em ebulição. Com arestas formais que a linguagem, freqüentemente à beira do neologismo, espelha, “A gula do beija-flor” é um livro no mínimo vigoroso em sua mescla de humor safado e uma profunda melancolia. Impossível ficar indiferente ao retrato, patético mas terno, de um homem que se recusa a desistir de uma fome que hoje está sobretudo em sua memória. Leia abaixo o trecho inicial:
Apesar da obscuridade de sua mente, dom Juan sabia que a intensa aclamação que lhe dedicavam não era por estar presidindo algo tão excêntrico como um congresso de sedutores ou por sua bem merecida condição de prócer da nação, mas principalmente pela maneira amável com que as pessoas honram aqueles que deixaram de ser perigosos.
Concentrou-se em nada para não chorar de emoção. Do ambiente pareciam se desprender salvas e serpentinas. Havia envelhecido até o absurdo, ele que costumava manter o país em suspenso, que com sua presença imantava as massas para derrotar ditaduras militares, guerreiro mitológico que capitaneou o triunfo dos k’estis, os pintados, como chamavam os mineiros, mistura de fuligem e glória, cholos, mestiços de índio, que tinham resolvido a insurreição de abril com o arrebatamento mortal da dinamite, disputando, desde então e para sempre, o poder centenário com uma oligarquia brancóide e excludente, e entregando à história um país vestido com a cor de suas raças. Pigarreou. Mas nem sequer essa divina inspiração do triunfo revolucionário, a mesma adrenalina que fez com que as hostes cruzadas arrasassem Constantinopla, evitou que abandonasse louros, cerimônias e aduladores para correr por entre o barulho esporádico dos obuses, últimos focos de uma resistência inútil, para se render diante de uma bela dama com quem tinha um encontro marcado. Depois que ela o repreendeu amargamente por acabar com a existência de sua classe, tirou o sutiã e permitiu que ele bebesse suas lágrimas.
A mão se moveu sozinha dando ritmo à papada. Quis deter essa demonstração de precariedade desconcentrando a vontade. A velhice lhe doía, e a quietude é sempre o melhor remédio contra a dor. Claro que se não fosse por essa dor profunda da decrepitude – que, na realidade, mais que uma dor é uma impossibilidade flagrante –, jamais teria se realizado o evento que se inaugurava neste preciso momento, tão significativo para ele. Mas este congresso, apesar de sua pompa, não era uma dessas maluquices com que os anciãos ridicularizam a si mesmos? Uma paródia feita com retalhos de glória que se desculpa entre risos?
Um mês atrás, durante as chuvas que precedem o carnaval – e que atemorizavam muito dom Juan porque ele sabia que, se passasse essa estação sem contrair uma pneumonia fulminante, teria ganho mais um ano –, se apresentou em seu pequeno apartamento uma jovem estudante. Como tantas outras, vinha entrevistá-lo e levar na fita gravada o autógrafo indelével de sua voz. Escoltado por Elmer, seu escudeiro, como ele se autodenominava, estava vendo um filme chinês de decapitações e caratezaços, anestesia para sua decadência, quando soou a campainha. Ouviu uma voz melodiosa pedindo o encontro e Elmer indagando e criando obstáculos. De maneira trêmula, dom Juan ordenou que ele não fosse tão “grosso” e a deixasse entrar.
Tratava-se de uma garota cuja idade não pôde calcular. Usava mariachiquinha e tinha rosto de colegial, corpo de mulher em botão, uma ligeira vulgaridade no perfil que aumentava sua atração, mas antes de tudo tinha frescor. Entrou com um passo que a aprumava graciosamente e o saudou com o manjado protocolo: “Que honra, dom Juan” e “Não imagina o quanto lhe agradeço”. A flor que essa boca fez lembrou-lhe alguma boca amada, os gestos, os do otimismo que desejava, e a pele corada lhe contou que tinha mamilos de maçapão: o lugar exato onde queria colocar a face e repousar. Essa moça, surgida com a água, era o elo rompido na parte mais tenra de sua vida. Ela explicava o enigma de sua existência. Seu sangue se animou, lhe destapou as varizes e fluiu galante de cima a baixo. Dom Juan sorriu longamente, exibindo sua dentadura – fez como os cavalos, revolvendo o lábio. Estava apaixonado. Jamais havia sentido tamanha comoção. Ergueu o corpo de faquir e começou a gesticular com o índice, essa técnica oratória clássica que decidiu na assembléia de Catavi a libertação dos reféns norte-americanos. Garantiu para ela que seu estado de prostração era passageiro e que, uma vez recuperado, voltaria à arena dos acontecimentos políticos, pois estava farto de tanta corrupção e de tanto desprezo para com o povo trabalhador – falou com veemência para convencê-la de que ainda podia vencer. Não parou de falar diante de um Elmer espantado de vê-lo ressuscitar. Temia que o Mestre, como seus companheiros costumavam chamá-lo, se descadeirasse com tanta veemência ou tivesse um faniquito. Mesmo comovida com suas palavras de avô, a moça não deixou de folhear seu caderno, uma vez, outra vez. Por um bom tempo procurou impressioná-la com uma avalancha de anedotas que sua memória entremesclava. Inclusive recusou atender ao telefonema do embaixador francês, que o convidava para um banquete para exibi-lo como a um leão de circo: o reconhecimento que a glória lhe proporcionava. Também descartou a visita de uma comissão da mina Chumaceiro, na verdade o golpe de algum sujeito sabido para lhe arrancar uns pesos. Uma repentina tosse asmática obrigou-o a parar. Só então a jovem pôde se apresentar. Chamava-se Maya e estudava jornalismo. Devia fazer um trabalho acadêmico e, sendo dom Juan seu “personagem favorito”, queria fazê-lo sobre ele – falou com essa abundância de movimentos com que as jovens agradam. Concluiu girando graciosamente a cabeça, as madeixas como hélices.
– Pra você dou dez entrevistas, senhorita.
– Uma vai ser mais do que suficiente – assegurou ela, juntando as mãos.
A resposta acertou dom Juan, que retrocedeu até se encolher no espaldar. Enviesou os olhos e puxou pelo bestunto, em busca de algum recurso elétrico para apanhá-la, agora que finalmente a tinha encontrado. Não lhe ocorreu nada. Pediu a ela que voltasse no dia seguinte.
5 Comentários
Caramba. É um dos melhores inícios de obra literária que já vi. Vai para os “dez mais”, ao lado de O Estrangeiro (“Minha mãe morreu …”), Grande Sertão: Veredas (“Nonada …”), Conversa na Catedral (“… não sei exatamente em que momento o Peru se fudeu…”), Ensaio sobre a Cegueira (“No dia seguinte ninguém enxergou…”) e outros poucos.
Nem li, mas já valeu a indicação.
Fiz uma confusão com as obras do Saramago. Isso é que dá confiar na memória. A obra que eu quis citar era Intermitências da Morte, e o início é “No dia seguinte ninguém morreu.(…)”. Mas vá lá, a minha falha de memória fica por conta dos desvios ideológicos do Saramago, que eu só perdôo pelo imenso talento que ele tem.
Erro corrigido a tempo.
promete, mas a memorabilidade relembra o general Buendía d´Cem anos de Solidao. Acho e vai se sucesso por aqui.
tava em dúvida de que livro comprar na feira (só tenho um tiro)…
vai ser esse!
Pareceu-me bom. Espero que não se transforme num tipo de A Casa dos Budas Ditosos.