Esse anti-sensacionalismo do tom, o não-anúncio do incomum, confere ao incomum, até mesmo ao pavoroso, um bem-estar pequeno-burguês muito característico. Esse produto misto de horror e conforto perdeu, hoje, certamente, a estranheza que, a seus primeiros leitores, dera a impressão de loucura. Todos nós estamos a par dos “aposentos sociais” que os chefes de campos de extermínio mobiliaram com estofados, vitrolas e quebra-luzes, parede-meia com as câmaras de gás. A sala de estar de K., no ginásio de esportes de O castelo, não é em nada mais fantástica do que esses cômodos contíguos às câmaras de gás, os quais, sem dúvida, pareciam normais a seus usuários. Esse cruzamento “louco” (“desloucado”) de ambientes, empreendido por Kafka, é, na verdade, uma descrição da realidade; uma descrição do fato de que, hoje em dia, o “mundo dos deveres” e o “mundo familiar privado” mal têm algo a ver um com o outro, ainda que se instalem sob o mesmo teto ou, pelo menos, se interseccionem como mundo único. Na realidade, o exterminador industrializado e o jovial pai de família são um único e mesmo homem. Mas, uma vez que a total discrepância entre as “esferas da vida” é considerada natural, do ponto de vista social, e que o espanto ou o horror não podem ser, afinal, uma disposição vital perpetuadora para o homem médio, o método de Kafka, de colocar o espantoso como algo despojado de espanto, é completamente realista.
Vista do prisma puramente técnico, essa dessensacionalização mais uma vez é conseguida pelo método já mencionado de inversão, isto é: sujeito e objeto são – como em todas as fábulas – invertidos ou trocados. Isso soa como algo meramente gramatical, porém significa bem mais. Se em suas fábulas Esopo quer dizer que os homens são como os bichos, mostra, então, que os bichos são homens; se Brecht pretende dizer na Ópera dos três vinténs que os burgueses são ladrões, então ele coloca os ladrões como burgueses. Se Kafka deseja afirmar que o “natural” e “não-espantoso” de nosso mundo é pavoroso, então ele faz uma inversão: o pavor não é espantoso.
Ao tratar Kafka como um escritor “completamente realista”, o ensaio radical, profundo e cristalino “Kafka: pró e contra – os autos do processo”, do pensador Günther Anders, não provoca hoje o mesmo espanto da época de seu lançamento, em 1946. Mas o fato de sua tese parecer mais aceitável não deixa de ser um tributo à influência exercida por esse texto sobre o modo como o gênio tcheco é compreendido. O mesmo Modesto Carone que assinou a primeira tradução do ensaio de Anders publicada no Brasil, em 1969, revisou-a meticulosamente – a ponto de afirmar no posfácio que fez “uma nova tradução” – para a edição da coleção Ensainhos (Cosac Naify, 176 páginas, R$ 32) que chega às livrarias esta semana.
18 Comentários
Kafka é uma cornucópia… dele tiram todas as interpretações e interpolações possíveis e impossíveis…
Escritor realista, por que não?
Também surrealista… ou onírico… ou ideológico-panfletário (denunciava a ovo da serpente nazista…), enfim…o freguês escolhe.
Levam-no a sério demais, quando ele mesmo não se levava tão a sério assim…
Agora, nessa “nova tradução” feita pelo Carone, será que a essência do texto também não se tornou “nova”?
Faz absolutamente todo o sentido. Deu vontade de ler.
Tzvetan Todorov, em seu essencial ensaio sobre o Fantástico (Introduction à la littérature fantastique), diz que o fantástico em Kafka não é exatamente o fantástico clássico, porque em suas obras não há o lado “realista” para contrastar, para assegurar que o que lemos e os personagens vivem é “não-real”, como até então se usava fazer. Em Kafka, tudo é fantástico o tempo todo. O mundo não tem o “normal”, o mundo é o bizarro, o estranho, o fantástico.
Toda hora lançam interpretações do Kafka!!!!! Eu nem li o post inteiro, mas posso afirmar que de todas as 12984732 interpretações da sua obra, essa com certeza é bastante ….
Kafta?
Kafka… sem comentários…
Acho meio chato a gana de esmiuçar obras e autores (criações e criadores) por mais que pareça prazeiroso. O fato é Kafka mexe. Kafka é!
Estou com o Tibor… Kafka é legal, mas prefiro meia porção de pasta de grão de bico com duas kaftas e um pão árabe aqui no Largo do Machado.
Meus Deus, existe vida inteligente na net…
Quando li o ensaio sobre William Faulkner no Portal Literal, pensei comigo mesmo: Esse cara tem futuro, tem sim.
Será que ele tbém gosta de Kibe ??
Oi, Tibor. Legal que gostou do meu ensaio sobre o Faulkner no Portal Literal! Sendo sincero, acho que só você e o Jonas leram o ensaio. rs… Obrigado pelo estímulo.
Lembro-me dessa edição antiga de “Kafka: pró e contra” na biblioteca ao lado de outros livros como “Kafka, por uma literatura menor”. Mas os melhores textos que li sobre Kafka são mesmo de autoria de Borges, este até traduziu algumas obras do autor tcheco.
Mas como qualquer grande autor, Kafka parece ser irredutível, sempre maior do que os comentários que possamos fazer sobre ele. (mais ou menos o que que Bloom fala sobre Shakespeare). .
Jatobá: eu li também. E gostei.
O Saint-Clair também leu. O círculo está aumentando…
Então, somando minha mãe nessa conta, são cinco leitores! Pode até não ser um círculo, mas o pentágono está feito… Abs, e boa páscoa!
… e traçando diagonais entre os vértices internos do pentágono, construiremos um pentagrama. É coisa forte mesmo 🙂
* Sim, os vértices são apenas os pontos. Mas, deu pra entender, não é?