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Leia um trecho de Mo Yan, Nobel de Literatura de 2012

11/10/2012

O chinês Mo Yan, que ganhou hoje o Nobel de Literatura, aparecia em todas as listas de favoritos – na preferência dos apostadores da casa londrina Ladbrokes, estava em quarto lugar –, mas isso não quer dizer que sua obra seja fartamente conhecida no Ocidente. Como quase todo mundo, saí correndo atrás de informações sobre o homem, que não tem nenhum livro lançado no Brasil e que, na loja do Kindle, conta com apenas um título (em pré-venda!).

As notícias da premiação (aqui e aqui) e o comentário de Maria Carolina Maia no vizinho “Veja Meus Livros” satisfazem a maior parte da curiosidade que se possa ter sobre o homem, uma escolha que tem inegável dimensão política, daquelas que o Nobel gosta de fazer. A partir do pseudônimo que adotou para escrever, e que significa “Não fale”, Mo Yan mantém relações tensas com o mundo oficial de seu país, onde a liberdade de expressão é restrita. A Academia Sueca o saudou por seu “realismo alucinatório” e o comparou a William Faulkner e Gabriel García Márquez.

A melhor forma de conhecer um escritor, porém, é lê-lo. Por isso decidi traduzir o trecho inicial do romance Life and death are wearing me out (algo como “A vida e a morte estão acabando comigo”), uma alegoria que conta a história da China moderna por meio das sucessivas reencarnações de um fazendeiro assassinado durante a reforma agrária de Mao Tsé Tung, em 1948. Aqui, morto há pouco tempo, ele aparece sendo torturado no inferno. Como faltei às aulas de mandarim na escola, parti da tradução de Howard Goldblatt para a editora americana Arcade. Um crime tradutório, certo, mas acredito que perdoável em nome da agilidade jornalística. O humor negro do trecho é marcante.

Minha história começa no dia 1º de janeiro de 1950. Nos dois anos anteriores, nas profundezas do inferno, eu tinha sofrido torturas cruéis que nenhum ser humano seria capaz de conceber. Sempre que era trazido ao tribunal, proclamava minha inocência em tons solenes, comoventes, tristes, desgraçados, que penetravam cada greta do Salão de Audiência do Senhor Yama e repercutiam em muitas camadas de ecos. Nem uma palavra de arrependimento saiu de meus lábios, embora eu fosse torturado cruelmente, o que me valeu a reputação de homem de ferro. Sei que ganhei o respeito silencioso de muitos dos funcionários do submundo de Yama, mas sei também que o Senhor Yama não me suportava mais. Assim, para me obrigar a admitir a derrota, submeteram-me à mais sinistra forma de tortura que o inferno tem em seu estoque: atiraram-me numa tina de óleo fervente, na qual eu rolei, me contorci e chiei feito um frango frito por cerca de uma hora. Palavras não têm como fazer justiça à agonia que senti até que um servente me espetou com um tridente e, carregando-me bem alto, me conduziu à escadaria do palácio. Juntaram-se a ele dois outros serviçais, um de cada lado, que guinchavam como morcegos-vampiros toda vez que o óleo escaldante pingava de meu corpo nos degraus do Salão de Audiência, produzindo borrifos e pequenas nuvens de fumaça amarela. Com cuidado, depositaram-me numa laje aos pés do trono e fizeram uma profunda mesura.

– Grande Senhor – anunciou o servente que me carregara. – Ele está frito.

Tendo fritado até ficar crocante, eu sabia que o mais leve impacto me transformaria num monte de fragmentos estorricados. Então, das alturas do salão acima de mim, de algum ponto no meio do clarão de velas do salão acima de mim, ouvi a pergunta zombeteira do próprio Senhor Yama:

– Ximen Nao, cujo nome significa Rebelião no Portão Ocidental, há mais rebeliões em seus planos?

Não vou mentir para você: naquele momento eu balancei, meu corpo quebradiço jogado numa poça de óleo que ainda borbulhava, estalando. Eu não tinha ilusões, havia atingido o limiar da dor e não conseguia imaginar qual tortura aqueles oficiais venais empregariam em seguida se eu não cedesse agora. No entanto, se eu fizesse isso, não teria sofrido todas as brutalidades anteriores em vão? Ergui com grande esforço a cabeça, que poderia facilmente se soltar do corpo, e olhando na direção da luz das velas vi o Senhor Yama ladeado por juízes do submundo, sentados com sorrisos oleaginosos em seus rostos. A raiva se agitou dentro de mim. Ao inferno com eles!, pensei, o que era bem apropriado. Que me reduzam a pó num moinho ou me transformem em pasta num pilão, se quiserem, mas não vou recuar.

– Sou inocente! – bradei.

20 Comentários

  • Marcelo ac 11/10/2012em16:39

    Há alguns anos que eu venho me decepcionando com esse prêmio. Está certo privilegiar quem está quase carregando o mundo, mas essa insistência do Nobel em premiar completos desconhecidos, pelo menos para o grande público, só dá prestígio para o prêmio e para quem está super, super, superenfronhado nos mais inéditos candidatos. Nada contra, mas também nada a favor! É pífio.

  • carlos River 11/10/2012em19:28

    Este trecho lembra o nonsense do Bob Esponja. A política interfere na arte.

  • Guerra 11/10/2012em20:53

    É, o autor chinês sabe buscar palavras no extremo para narrar o que deve ser entendido no extremo. E é irônico. Gostei demais. Congratulo-me com você, Sérgio.

  • Iurica 11/10/2012em21:35

    Agradeço.JA ESTIVE LA.

  • Rosangela 12/10/2012em12:58

    Quer dizer que este ganhou o premio de literatura? Prefiro Manoel de Barros…

    Mas o mundo incita este tipo de literatura… Fazer o quê, né? E os que sabem disso entrarão para este submundo… submundo da subliteratura.

    É isso.

  • Rosangela Maria 12/10/2012em13:16

    Eu penso que é significativo comentar aqui que a tradição diz que o apostolo João, o querido João, foi jogado no óleo quente…

    Sei que muitos podem nao ligar uma coisa a outra, mas como esta Ordem Mundial não dorme no ponto e nada faz sem milimitrar suas INTENÇÕES,deixo aqui este comentário nada ortodoxo…

    Querem ganhar premios mundias? Façam tudo aquilo que a ordem mundial gosta…
    Pode parecer a favor do homem livre, mas é justamente ao contrário.
    Não esquecer que o homem que queria ver o homem verdadeiramente livre foi jogado no óleo quente…- assim diz a tradição.

    Bem…

  • jose 12/10/2012em15:20

    Os escritores comunistas ou neo comunistas estão na moda para a academia sueca.Há alguns anos atrás era ao contrário.

  • Guilherme 12/10/2012em15:47

    É natural que uma tradução do inglês, previamente traduzida do mandarim, pareça fraca e inferior. Sergio o traduziu para mostrar a essência da obra de Mo Yan, o claro humor do Nobel. Magnífico mesmo deve ser ler no original, mas só os chineses e alguns outros poucos mortais são dotados da capacidade de compreender risquinhos.

  • Lauricelia 12/10/2012em19:24

    Acho que o objetivo é de nos aproximar do Mandarim. Difícil heim!

  • Acylino de Almeida Lins Filho 12/10/2012em22:54

    O premio Nobel foi mas que merecido! “Justo” não é necessário que seja apenas um grande escritor,precisa ter coragem de retratar a realidade de seu país e de outras nações; quase sempre causando grandes descontentamentos a quem for atingido por esses comentarios,e muitas vezes acontecem represálias ao escritor e seus familiares.Veja só a falta de liberdade do autor, teve que usar pseodonimo para publicar sua obra. Deduzirei a obra por ter o hábito de ler o inicio, o meio e a conclusão final, aí tenho um panorama parcial do que o autor quis nos transmitir;li a tradução do Veja e farei a minha analise a partir dele. O autor retrata a Era de Mao Tse Tung 1948,onde ele governa com repressão os camponeses, quando fez a reforma agrária,o autor usa a reencarnação em sentido figurado como um longo prazo para a modificação do regime, que só morrendo e renascendo poderia modificar o regime enraizado da ditadura,que precisaria de varias décadas para ser tranformado,e de lá para cá,já se passaram 64 anos e ainda se presencia atos semelhantes.Ele sonha com a liberdade de expressão em seu pais e quem sabe uma democracia ampla.Espero que meu comentário e o ganhador do premio Nobel, MO YAN, possamos gozar da liberdade de expressar nosso sentimentos, onde o povo moderno possa nos apoiar,dando-nos coragem,para fazermos do mundo uma só democracia.