Não há dúvida de que o leitor internacional é sempre um leitor inseguro e preocupado, como um histérico deitado num sofá. Quer dizer, não sei nada da língua em que esse conto chamado “Animais” foi escrito. E também não sei exatamente onde fica Porto Alegre – que é onde o conto de Michel Laub começa. O que eu digo é que isso faz um leitor ficar ansioso. Tenho que supor que fique no Brasil. E, no entanto, acho que é possível de alguma forma grosseira, em vez de ligar para esses problemas éticos, simplesmente prestar atenção no que está ali.
(…)
Porque a beleza dessa história – e essa beleza sobrevive a quaisquer ansiedades com as quais sua tradutora, Margaret Jull Costa, tenha se preocupado para produzir essa peça tão cuidadosa e bem organizada de prosa em inglês, da mesma forma que sobrevive agora às ansiedades de seu leitor internacional – é seu movimento ágil.
Há algo de cômico e perturbador na breve resenha do conto “Animais”, de Michel Laub (foto), publicada pelo escritor inglês Adam Thirlwell no site da “Granta”, a propósito do lançamento internacional da edição da revista dedicada ao Brasil. Com as credenciais de quem foi selecionado entre os “Melhores jovens romancistas britânicos” da “Granta” em 2003, o resenhista – que claramente está ali mais como mestre de cerimônias do que como crítico – acaba revelando que adorou o conto. Chega a dizer que ficou com vontade de ler tudo o que Laub escreveu na vida. O que é apenas justo. “Animais” é uma pequena obra-prima.
Antes de dizer isso, porém, Thirlwell achou necessário embarcar num nariz de cera sobre sua ignorância da língua e do país em que a história foi escrita. Eis o que é cômico e perturbador. Cômico porque um Google rápido resolveria sua ansiedade sobre a localização de Porto Alegre, que ele classifica estranhamente como “problema ético”. Perturbador porque o subtexto deixa entrever uma ignorância maior: de que adianta saber onde fica a cidade e não como as pessoas vivem lá, quais são seus valores, se por exemplo comem – God forbid! – cachorro cozido no almoço, algo que alteraria completamente o significado da morte do animal de estimação do narrador?
É cômico imaginar o resenhista sendo assaltado por essas “ansiedades de leitor internacional” diante de um conto de Tchekhov, por exemplo. Pode-se apostar que a estação Bologoye na ferrovia Nikolayevsky – citada no conto “Um homem feliz” – seja um buraco pelo menos tão negro quanto Porto Alegre em sua cultura geográfica, com o agravante de que o russo é uma língua mais distante do inglês do que a nossa. E é perturbador compreender que Tchekhov, membro do ilustre clube dos escritores russos, não lhe inspiraria nada sequer parecido com tais angústias.
A ansiedade de Thirlwell, percebemos então, vai além de sua declarada ignorância da geografia, do idioma e da cultura que pariram “Animais”. Trata-se da insegurança do crítico que se vê na obrigação de julgar uma obra de arte baseado exclusivamente no próprio faro, sem o conforto dos juízos protocolados por autoridades incontestáveis no cartório do mundo. Isso também é cômico, mas fica perturbador quando, de forma até deselegante, o resenhista resolve escancarar uma saída de emergência para o caso de seu elogio ser contestado amanhã: sabe-se lá o trabalho que teve a tradutora para “produzir essa peça tão cuidadosa e bem organizada de prosa em inglês”! Fica-se com a impressão de que o original foi encontrado num tablete de argila deteriorado em sânscrito.
No fim das contas, Thirlwell diz ter ficado com vontade de aprender uma língua estrangeira, o que sem dúvida lhe seria de grande proveito. Aqui do meu lado de “leitor internacional”, fiquei pensando que o conto do Michel merecia um elogio menos condescendente e medroso. E que o caminho diante da literatura brasileira em seu projeto de inserção internacional é mais longo e cheio de armadilhas do que se pensa.
15 Comentários
Texto excelente, Sérgio.
Ainda estou meio pasmo e assustado com as implicações da resenha citada.
Obrigado, Arthur. Mas não sei se merece tanto susto. Acho que o texto do cara é mesmo ilustrativo de alguns entraves na recepção internacional da literatura brasileira. Mas em parte é fruto da idiotice pessoal dele.
Inclemente, hein Sérgio? kkk
Também achei bem besta essa introdução do Thrilwell. Afinal, uma das coisas mais gostosas da literatura é sim aquele velho clichê – descobrir novos lugares, culturas e pessoas. Um dos meus melhores prazeres nos últimos tempos foi debutar na obra do Ismail Kadaré e descobrir aquele mundão louco dos Balcãs e adjacências. Isso é tão óbvio que, como vc disse, a desculpa do crítica virou cômica.
No fundo é isso mesmo – receio de dar uma opinião simplesmente baseada na obra em si, num vácuo de referências às quais a literatura do Laub possa estar inserida.
Gosto muito do Laub, Galera, Saavedra e acho o máximo o acontecimento dessa Granta. Mas essa onda toda de textos de “Grantas resenhando Grantas” tá me parecendo auto-congratulatória demais. Não cheira muito bem não.
Não acho que o resenhista deva ser criticado pelo simples fato de ter gostado do que leu. O papel do crítico não é apenas “criticar”, essa desonestidade de quem pensa que está acima das ideias apenas porque critica é implicância de rebelde querendo chamar atenção. Você diz que “o resenhista – que claramente está ali mais como mestre de cerimônias do que como crítico – acaba revelando que adorou o conto”, então um resenhista não pode gostar do conto que lê porque senão irá perder o “prestigiado” posto de “crítico”?
Mari, você não leu o texto todo, né? Não é nada nem perto disso!
Maravilhoso texto. Quem sabe agora com a edição da Granta e mais pessoas do circulo “internacional” lendo as obras brasileiras, não seja possível ampliar, também, o compromisso de um texto sério vindo dos que resenham obras.
Caro Sérgio,
Eu sou um leitor assíduo do seu blog, fã
do seu livro Elsa e respeito muito a sua opinião.
Dito isto, quebro o meu silêncio habitual e chego aqui
num esforço herculio que a disgrafia me impõe para não
parecer ridiculo, pretencioso ou mesmo apenas um troll
ao discordar de você. Eu chamo a sua atenção a sua atenção para
a injustiça que você esta cometendo com o Adam Thirlwell,
o critico em questão.
O Adam Thirlwell escreveu um livro chamado
Miss Herbert. Este livro tem como tema principal a
tradução de obras literarias e sua capacidade ou não
de transmitir o “estilo” e conteúdo. Segundo o meu entendimento
este escreve sobre como um tradutor pode modificar e
re-escrever um livro.
O que parece “cômico e perturbador” na verdade é um grande elogio
a tradutora cujo trabalho foi bom o suficiente para manter a beleza do estilo
e do livro de forma geral. O elogio a tradutora reflete no
escritor Michel Laub. Afianl, a tradutora é boa suficiente para manter o estilo, a beleza e
a integridade o livro original.
Grande abraço
Caro Fabio, obrigado pela leitura e pelas palavras gentis. Sua discordância não tem nada de trollagem, evidentemente, nem precisaria se preocupar. Entendo seu ponto de vista e concordo que Thirlwell quis destacar a importância de uma boa tradução, o que é louvável e nem sempre observado. O problema é que fez isso às custas de deixar estranhas sombras sobre os méritos e as intenções do original. Ocorre que a prosa de Michel Laub é a coisa mais fácil do mundo de traduzir e o elogio cheio de dedos do cara acabou soando, no mínimo, condescendente. Achei feio. O conto em questão não merecia. Um abraço.
Caro Sérgio,
Agradeço a resposta e me atrevo a te importunar novamente. Haja vista a boa receptividade, eu aproveito para aprofundar o meu raciocínio. No seu post sobre o blog do Juan Pablo Villalobos você diz ” crítico sem ser preconceituoso, um tanto fixado em clichês – o que é compreensível – sem ser tolo ou ofensivo. Definitivamente, algo parece estar começando a mudar na percepção internacional sobre a vida por aqui” , entre um post e outros vários comentários. Apesar do pensamento em si ser verdadeiro, fica evidente a sua preocupação com a “imagem” que o estrangeiro carrega no seu consciente. Voltando ao post atual, mesmo que em nenhum momento você tenha tocado no assunto, nos comentários encontramos exposta uma antiga crença tupiniquim na qual existe preconceito dos que emitem opinião sobre o nosso Brazil varonil. Bom, pode ser até verdade em alguns casos mas não me parece ser uma verdade universal, e acreditar que qualquer palpiteiro tem a intenção de difamar e atingir a honra do nossa pátria me parece nos dias de hoje um pensamento infantil, não me refiro diretamente a você neste caso. O paradoxo desta história é que o reflexo dessa nossa paranóia é que tratamos com preconceito aqueles que supostamente são preconceituosos conosco. Enfim, não seria o caso de deixarmos esta preocupação de lado e tratarmos cada crítica exatamente como esta foi formulada, e que no fundo deveriamos sim rever esta imagem que nós carregamos de nós mesmo e do nosso país? No meu ponto de vista tudo isso revela uma grande ironia pois a imagem internacional sobre o que acontece nestas bandas é tão distante da realidade quanto a imagem que nós temos de nós mesmos. Abs
Fabio, você toca em questões realmente profundas. Estando sem tempo agora para entrar nesse mar aberto, vou tentar uma versão resumida do que penso. Concordo: existe na cultura brasileira uma fixação exagerada na questão da “nossa imagem lá fora”, com componentes de paranoia e histeria. O fato de essa fixação ser em grande parte uma reação a preconceitos reais não diminui o ridículo da preocupação excessiva que trai, de forma invisível apenas para nós mesmos, uma insegurança infantil. Isso é uma coisa. Outra é constatar um tom condescendente e pouco corajoso na resenha sobre o Laub. Quanto a isso posso estar enganado (sinceramente, não creio), mas não pelos motivos que você sugere. “Nossa imagem lá fora” é uma das minhas menores preocupações na vida, mesmo porque sei, em primeira mão, que ela é pouco mais que um borrão. O que disse sobre o Villalobos é apenas a constatação de um fato evidente: algo está, muito lentamente, começando a mudar quanto a isso. Abraço.
“Trata-se da insegurança do crítico que se vê na obrigação de julgar uma obra de arte baseado exclusivamente no próprio faro, sem o conforto dos juízos protocolados por autoridades incontestáveis no cartório do mundo.”
Sinceramente? Pelo que percebo e pelo que acompanho da literatura, dentro ou fora do Brasil, existe somente dois tipos de críticos: os que promovem uma obra por uma questão “mercadológica” e os que concordam com a obra promovida pelo crítico anterior. Imparcialidade de julgamento, julgar a obra independente de seu autor, bem, eu nunca vi.
Sergio, eu acho que ele foi cagão sim. Só que o trecho que traz “produzir essa peça tão cuidadosa e bem organizada de prosa em inglês” me parece mais uma espécie de reconhecimento dele, Thirlwell, enquanto escritor, do escritor no Laub. Ora, se não conheço português e não sei onde fica Porto Alegre, então eu fico devendo alguma coisa a esse brasileiro já que a minha leitura se deu nessa mediação “organizada de prosa em inglês”. Quem escreveu o que eu li é um inglês. É o Thirlwell reconhecendo uma leitura ruim, de criança sendo levada pela mão. E é aqui que eu percebo que você, Sergio, tem toda a razão e que a minha objeção se transformou em concordância total. Você tem razão. Fosse o Tolstoi, fosse o Tchekcov, e a boa prosa de inglês para inglês ficaria em vigésimo plano. Mas ele não teve nem repertório nem colhões para encarar a leitura de um brasileiro desconhecido, então vira uma ágil narrativa em inglês. Cê vê quantas voltas o cara deu pra apresentar tamanha escrotidão, hein? Tem aí também uma espécie de desdém cool pelo distante dos olhos, que nem aquela turma que diz com orgulho que não leu Ulisses.
Sérgio e comentadores em geral,
Eu tô aqui pertubando novamente muito provavelmente porque como diria minha esposa ao recusar corrigir este texto “você não tem nada melhor para fazer ?” e “como alguém que fica o dia inteiro compilando codigo de computador, falando com máquinas, pode achar algum sentido nisso?….você já foi a academia hoje?”
Bom, como parece importante eu cheio de vergonha revelo aos amigos que li Ulisses, cheio de vergonha pois não entendi muita coisa e briguei para terminar por acreditar ser importante. Eu sabia que um dia aquela tortura, quer dizer, leitura iria valer a pena. Em meu favor digo que eu entendi tudo do Ulisses tavares, serve?
Eu tenho certeza que comstatar um fato não é emitir um juizo de valor. O que me preocupa é quando a constatação de um fato é tratada como se fosse um juizo de valor ou quando um juizo de valor é tratado como se fosse um fato. O extremo desta discussão seria acordar um dia e ver estampado no Segundo Caderno a frase “Madame Carmem Miranda c’est moi” proferida pelo Ruy Castro, tamanha é a intimidade e eloquencia em se refere em entrevistas sobre a peguena notavel. Eu por mim encararia com naturalidade e diria que ele tem certa razão.
É claro que Sérgio a todo momento defende o seu ponto de vista e deixa claro que se trata de um juizo de valor e abre inclusive a possibilidade de estar errado. Será que se todos que bisolharem o post concordarem com o ponto de vista dele seria o suficiente para fazer deste juizo de valor um fato? Fazer sentido e parecer ser seria o bastante para validar uma hipotese? Aonde entra neste papo o contra intuitivo? O aleatório onde fica? Como construir em cima da lógica e das premissas e preencher lacunas sem levar em conta que é no fundo apenas mais uma construção? Infelizmente não se discute tanto qual o papel e o peso da verossimelhança. Pq no final a realidade a “realidade” não tem nenhum compromisso direto com ela.
Abraço do chato.
ps eu deixei um comentário no post do cara para saber se ele foi ou não inseguro. Espora que ele seja tão gentil e bacana como você e esclareça a minha dúvida.
sinceramente, quando comecei a ler achei que pudesse ser até um leitor nacional.
não li o livro, mas acho que ele quis dizer que, mesmo que soubesse, isso não importa.
Foda; só isso… :/