Num artigo do escritor gaúcho Antonio Xerxenesky, encontro esta citação – que não conhecia – retirada de uma entrevista do chileno Roberto Bolaño, um dos grandes renovadores da prosa de ficção nos últimos vinte anos, morto em 2003. Bolaño esboçou uma instigante tese de fumaças marxistas sobre a quase total ausência de uma ficção de gênero no cenário da literatura latino-americana: o subdesenvolvimento não deixa. O que ele diz sobre o fantástico pode ser transposto sem dificuldade para a ficção científica, o policial, o terror e qualquer dessas províncias onde moram as obras “menores” que, embora passem nos últimos anos por uma efervescência inédita no Brasil, a chamada grande crítica costuma desprezar:
Escritores que cultivaram o gênero fantástico, no sentido mais restrito do termo, temos muito poucos, para não dizer nenhum, entre outras coisas porque o subdesenvolvimento não permite a literatura de gênero. O subdesenvolvimento só permite a obra maior. A obra menor é, na paisagem monótona ou apocalíptica, um luxo inalcançável. Claro, isso não significa que nossa literatura esteja repleta de obras maiores, muito pelo contrário, mas sim que o impulso inicial só permite essas expectativas, que logo a mesma realidade que as propiciou se encarrega de frustrar de diferentes modos.
Parece um paradoxo e talvez seja mesmo, mas, se for, é um paradoxo que nos constitui culturalmente e que pode ser identificado em campos variados. O campo de futebol, por exemplo. O subdesenvolvimento cultural levou a crônica esportiva brasileira a cultivar, entre os anos 40 e o fim dos 50 do século passado, aquilo que Nelson Rodrigues chamou de “complexo de vira-lata”. Cobrava-se da seleção brasileira que fosse simplesmente a melhor do mundo, que humilhasse todas aquelas potências diante das quais nos sentíamos naturalmente humilhados. Como a seleção (até a Copa da Suécia, em 1958) mostrava-se incapaz de fazer isso, tínhamos a cada fracasso uma desilusão devastadora que parecia provar essa dura verdade: pobres, feios, analfabetos, desdentados, com a barriga cheia de vermes, nunca prestaríamos para nada.
Agora peço ao leitor que tenha alguma paciência e, pondo de lado o fato de Lula ter dilapidado a credibilidade das metáforas futebolísticas pelos próximos cinquenta anos, pense no modo como nosso ambiente literário – e não só a crítica acadêmica, embora ela se esmere nesse aspecto – tende a valorizar quase exclusivamente o Grande Livro, isto é, aquele que pode aspirar ao título mundial. E, como não o encontra, decreta à boca pequena ou ao megafone, dependendo do estilo de cada um, que não prestamos mesmo para nada. Isso faz um tremendo sentido bipolar: quem não se garante considera um fracasso vexaminoso tudo o que não seja a redenção incontestável.
Ampliando um pouco a tese de Bolaño – que é também a de Xerxenesky, autor de um livro pop, “Areia nos dentes”, que ousa enfiar zumbis num projeto literário mais ambicioso – eu arrisco dizer que essa mentalidade de vira-lata, ou de adolescente inseguro, não cria um ambiente hostil apenas para a literatura de gênero. A maior parte do campo da dita literatura séria também sofre, pois dominar a velha arte narrativa, ainda que com sofisticação, ainda que propondo novidades sutis de tema ou arquitetura, nunca bastará. Quem precisa de bons artesãos, de bons jogadores? Só o gênio interessa. Daí a presença ridiculamente inflada de ideias como ruptura e revolução na conversa literária. É preciso romper com tudo, isto é, reinventar o jogo, humilhar os adversários. É preciso que um neguinho de 17 anos faça gol dando lençol dentro da área na final.
Claro que, na vida real, quanto mais desprezamos as divisões de base, os torneios de várzea, os clássicos regionais, mais difícil se torna o surgimento de um Pelé. Como diz Bolaño, a mesma realidade que inspira a expectativa elevadíssima se encarrega de frustrá-la. Não admira que os leitores andem escassos nas arquibancadas.
20 Comentários
Olá, Sérgio.
Tudo bem?
Sou leitor regular do seu blog desde os tempos do IG e não preciso dizer que gosto muito.
Escrevi meu primeiro livro e o publiquei de maneira independente pelo clube de autores. Decidi enviá-lo a você, a título de leitura somente e peço algum contato.
Não sei se pode render algum post no blog, mas mesmo assim quero que leia o livro.
Agradeço pela atenção e aguardo retorno
Sds,
Anderson Estevan
desculpe o comentário ‘nada a ver’, mas o que acho mais legal nesse blog é essa variação da nuvem de tags.
Eo gostei muito do titulo do artigo! Eu acho que os Brasileiros tem complexo de vira lata em todas as areas…Porque? Um pais bonito com bastante potencial, criatividade. A mairia dos cidadoes estao sempre a menosprezar o que e Brasileiro e a valorizar o que e estrangeiro. Nem tudo que vem do chamado primeiro e melhor.
Sérgio, certeira a tua análise. A cultura brasileira parece que sofre de uma pseudo-iconoclastia. Enquanto enaltece a deposição dos “antigos” ídolos em detrimento das revoluções, acaba por adorar a dinâmica dos deuses. Tudo tem que ser “divino”, sublime. Acho que o que nos falta é um bocado de humanidade.
Sergio,
Grande parte da polêmica em torno do artigo do Xerxenesky vem dos entusiastas da ficção de gênero que, mostrando-se leitores menores, ofenderam-se com esse tratamento de “literatura menor” dado pelo autor à ficção especulativa.
Uma polêmica totalmente vazia, mas que pelo menos levanta a bola para a importância que vem angariando essa literatura de “acesso” no mercado literário brasileiro.
Ps: tive a honra de ter sido citado no post que deu origem a esse artigo, que falava do mesmo autores e idéias em que você esteve presente: http://blog.antonioxerxenesky.com/?p=739
Minha terra (nossa) é árida, infértil, para o florescimento das sthephanie meyers, jk rowlings etc?! Não ligo, acho irrelevante e descartável esse tipo de literatura.
Parabéns pelo texto, Sérgio. Abraço!
Caro Sérgio, tudo bem?
Gostei muito do texto e do blog todo, e…Paradoxo! Quando esta palavra tem lugar dentro de qualquer contexto, temos aquela grande avenida movimentada de “mão dupla”: Inevitável não olhar para os dois lados antes de atravessar. Acredito num olimpo, onde obras maiores ou menores, neguinhos e branquinhos tem o seu valor, afinal de contas não estávamos lá nos anos 30, 40, onde tudo começou. Liberdade de expressão, é coisa Sacra. E no que é Sacro, não cabe paradoxo, não cabe revolução. Forte Abraço. Leandro Ribeiro
Não existe Literatura irrelevante, leitores menores, essa baboseira ególatra que um monte de gente vomita para se sentir importante (e escapar do complexo de vira-latas, talvez?). Literatura de entretenimento despretensioso é um pecado para os Deuses Estéreis da Literatura Dita Séria.
É, às vezes, fico com medo, mas medo mesmo de tentar enfrentar esse raio que chamam de Grande Literatura…Mas ainda acredito num literatura que seja feita por novos escritores e que estes também façam parte do Olímpio Literário! Ah e sobre o que Bolaño diz, também acredito nas pequenas coisas invisíveis aos olhos e que só o poeta pode apreciá-las e escrevê-las…ah desculpe se me equivoco, não é só o poeta, mas aquele tbm com um pouco de subdesenvolvimento…hehehe XD abração!
E quem disse que literatura de entretenimento é, necessariamente, despretensiosa?
Desconfie do que é pretensioso.
Uma outra interpretação para isso eu ouvi outro dia, numa conversa sobre cinema. Uma senhora, cuja nome esqueci, defendia na imprensa que o cinema brasileiro não pode depender de verbas públicas, que ele tem que andar com as próprias pernas. Em suma, é preciso uma indústria de cinema nacional, fazendo alguns filmes “de indústria” mesmo, para bater mercado. Com isso, você semeia todo um campo, cria uma linguagem e faz surgir uns gênios. O que não pode, segundo essa mulher, é querer verba pública (porque a bilheteria não sustenta o cinema) para tentar fazer uma obra-prima a cada novo projeto. Talvez a literatura esteja mais ou menos no mesmo caminho. A literatura pop que o brasileiro lê, até onde sei, é a dos EUA. E olha que brasileiro que lê já é raridade… Ser um “gênio” é condição de sobrevivência de mercado na literatura do Brasil.
Olá, Sérgio. Outro artigo muito afiado. Tem um ensaio do Chandler, ‘A Simples Arte de Matar’, em que ele refuta uma crítica da época, que dividia a literatura em “de evasão” (baixa) e “de expressão” (alta). Diz ele que “tudo que se lê por prazer é uma evasão, seja um texto em grego, um livro de matemática ou de astronomia”. Confesso que sou limitado e muito focado em linguagem e no desenvolvimento de enredo/personagens (penso agora no magnífico início de ‘Madame Bovary’). Como disse o Evelyn Waugh em entrevista à Paris Review (http://www.theparisreview.org/interviews/4537/the-art-of-fiction-no-30-evelyn-waugh): “It’s drama, speech, and events that interest me”. Experiências radicais na forma nunca me interessaram muito, acho um negócio superestimado. E bom saber que “a ficção científica, o policial, o terror” e outros patinhos feios “passam nos últimos anos por uma efervescência inédita no Brasil”. Já era hora.
Silvio, boa lembrança a do Chandler. Acho impressionante como estamos distantes no Brasil dessa percepção (mais anglófona?) de boa prosa. A efervescência existe, embora a qualidade média ainda denuncie uma certa falta de prática, de mercado, de leitores. Mas é algo.
Rogério, pelo que me lembro desse trecho de 2666, não é meio que o contrário – ou pelo menos um tema diferente? Amalfitano acha triste a tendência de valorização das pequenas joias perfeitas (Bartleby, Um coração simples) em detrimento das obras ambiciosas demais, cheias demais de vida para serem bem acabadas, não? Acho interessante pensar nisso como um discurso metalinguístico sobre o próprio 2666.
Saraiva, tem razão: a longo prazo, é isso mesmo que ocorre.
Abraços a todos.
Sérgio, seu post lembrou-me do trecho do 2666 no qual o Bolaños fala sobre a preferência às obras maiores em detrimento dos “exercícios”. “Escolhia A Metamorfose em vez de O Processo, escolhia Bartebly em vez de Moby Dick, escolhia Um coração simples em vez de Bouvard e Pécuchet, e Um conto de Natal em vez de Um conto de duas cidades ou de As aventuras do sr. Pickwick. Que triste paradoxo, pensou Amalfitano. Nem mais os farmacêuticos ilustrados se atrevem a grandes obras, imperfeitas, torrenciais, as que abrem caminhos no desconhecido. Escolhem os exercícios perfeitos dos grandes mestres. Ou o que dá na mesma: querem ver os grandes mestres em sessões de treino de esgrima, mas não querem saber dos combates de verdade, nos quais os grandes mestres lutam contra aquilo, esse aquilo que atemoriza a todos nós, esse aquilo que acovarda e põe na defensiva, e há sangue e ferimentos mortais e fetidez”.
Acho que essa preferência pela obra-prima, pela grandiloquência, na América Latina, em detrimento de obras menores, do conto, da novela, ainda está para ser desvendada. Parece que todos nós queremos fazer “Ulisses” ou “Em Busca do Tempo perdido” e deixamos de apreciar coisas tidas como menores.
Abraço.
Disso tudo, só acho que a “grande crítica” é composta pelos próprios escritores.
Aguardo ansiosa que a efervescência inédita de “obras menores” no Brasil seja tendência duradoura.
Ótimo seu texto. Abordou questão que me intriga como leitora, porque amo tanto “obras menores” quanto “obras maiores”, basta que me levem àquele estado de espírito em que o entorno desaparece e ocorre o mergulho na história. Isso geralmente ocorre em função de um bom enredo, personagens carismáticos e linguagem interessante. Nada mais chato do que esnobismo literário.
Diante das coisas lidas, me vem uma indagação: Será que esse nosso apetite pedante pelo file-mignon literário não seria uma forma (complexo) de nos desfastiar da carne-de-panela comida por nós (subdesenvolvidos, latinoamericanos, como queiram) na vida “real”? Pessoas versadas em teoria literária por um prisma mais sociológico, manifestem-se!
Sérgio, a palavra “desfastiar” existe ou eu consegui criar um neologismo? Sem querer ser chato ( é que estou com preguiça de pegar meu Houaiss, minha gramática e meu “Guia do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa – Assinado em Lisboa a 16 de Dezembro de 1990”; latinoamericano agora se escreveria sem hífen?