A propósito do lançamento do tijolão The Cambridge history of the American novel, produto de um coletivo de acadêmicos, o crítico Joseph Epstein publicou sábado no “Wall Street Journal” o mais devastador artigo (em inglês, acesso gratuito) que já li sobre o progressivo afastamento entre os estudos literários feitos no âmbito da universidade e tudo aquilo que na vida real faz da literatura, literatura. “Só o que ficou fora do livro”, diz Epstein com ironia, “foram questões como a de por que é importante e mesmo prazeroso ler romances e como acontece de certos romances serem imensamente superiores aos outros.”
Basta abstrair as referências à realidade americana para ter um retrato mais ou menos fiel do que se passa no Brasil e, presumo, em muitos outros países. Para leituras complementares, recomendo dois textos que publiquei aqui no Todoprosa: A crítica de mal com a literatura e Quer odiar literatura? Estude Letras.
Tenho certeza que um dia nós – ou nossos descendentes – vamos rir disso tudo. Mas será preciso esperar tanto? Abaixo, alguns trechos do artigo de Epstein:
É improvável que a maioria dos leitores já tenha ouvido falar dos autores que colaboram em “The Cambridge history of the American novel”, na maior parte professores de departamentos de letras de universidades americanas. Eu mesmo, que lecionei num desses departamentos por três décadas, só reconheci os nomes de quatro deles. Há não mais de 40 ou 50 anos, os departamentos de letras atraíam homens e mulheres que escreviam livros de interesse intelectual geral e tinham nomes reconhecidos fora da academia – Perry Miller, Aileen Ward, Walter Jackson Bate, Marjorie Hope Nicolson, Joseph Wood Krutch, Lionel Trilling, e seria possível nomear uma dúzia de outros – mas já não é assim. Hoje em dia, a literatura ensinada na universidade é um jogo estritamente intramuros.
Isso talvez seja uma notícia surpreendente para os colaboradores de “The Cambridge history of the American novel”, que se orgulham de possuir interesses muito mais amplos e relevantes, além de um maior engajamento com o mundo, do que seus predecessores na academia. Notas biográficas sobre eles falam de sua preocupação com “formas de personificação moral nos romances americanos”, a “poética da política externa” e a “ecocrítica e teorias de modernização, pós-modernização e globalização”.
No entanto, pelo passe de mágica de uma prosa tediosa e claudicante, os colaboradores de “The Cambridge history of the American novel” conseguem fazer com que esses temas supostamente sofisticados pareçam paroquiais ao extremo – de interesse restrito apenas aos seus pares, o que é certamente uma definição pejorativa do trabalho acadêmico. Esses estudiosos ensinam inglês, mas nem sempre escrevem em inglês, pelo menos não exatamente. (…)
Quais são as razões desse declínio [dos departamentos de letras]? Há muitas, mas na raiz de tudo está o fracasso desses departamentos em todo o país em lutar pelos livros que ensinam e apresentar aos estudantes uma defesa convincente da ideia de que o conhecimento de tais livros e da tradição em que eles existem é um valor humano em si mesmo. O que esses departamentos fizeram, em vez disso, foi desmembrar o currículo, afastar-se da noção de que a cronologia histórica é importante e substituir os próprios livros por uma gama difusa de considerações secundárias (estudos de identidade, teoria abstrusa, sexualidade, cinema e cultura popular). Ao fazer isso, distanciaram-se dos jovens interessados em bons livros.
6 Comentários
Sérgio, preciso dizer que meu dia ficou mais feliz com esse texto? hahaha. Quantas teorias levantamos em menos de três dias? O lance é colocar no papel e parar de emoldurar a literatura num quadrado de vidro narcisista!
Prezado colunista:
Acredito que também em outras áreas a academia está se distanciando cada vez mais da realidade ao seu redor.Uma pena.
Oi, Emanuela! Bom ver você aqui. Sua participação, seu interesse e suas leituras ajudaram a tornar mais bacana a oficina aí em Curitiba. Nos vemos na Bienal, certo?
João: infelizmente, acho que você tem razão. A especialização excessiva e a burocratização da carreira acadêmica costumam ser apresentadas entre as explicações para isso.
Pedro Sette-Câmara, tradutor, ensaísta e blogueiro, também trata do assunto de maneira interessante. Cito trechos:
“Quem faz faculdade de Letras descobre que um dos principais problemas do ensino é a perpetuação da confusão entre um princípio metodológico – a abstração do juízo de valor – e uma afirmação de fato – tudo tem o mesmo valor.”
“Uma faculdade de Letras deveria formar linguistas ou críticos literários, ou pelo menos desenvolver nos leitores algum potencial crítico; a postura científica de “neutralidade” está formando livreiros teóricos, pessoas que seriam capazes de descrever as obras mas que não se atreveriam a responder a temível pergunta: dado que vamos morrer e que o tempo é curto, em que devo investir meu tempo e minha atenção?”
Aqui: http://www.pedrosette.com/2011/08/o-livreiro-e-o-critico.html
Sérgio, é verdade, hoje, mais do que nunca, os acadêmicos se parecem com aquela figura na fila em Annie Hall de Woody Allen. Eles não trabalham em prol da literatura, a fim de descobrir pessoas ou incentivar novos leitores, etc. Eles afastam as pessoas da literatura, na medida em que ignoram que ler é um ato simples humano e prazeroso antes de ser uma arte discutida nas universidades. Além disso, sem críticos que critiquem, hoje a mediocridade domina, o fraco e o bom acabam nivelados pela falta de real interação deles com a literatura, mais palavra, arte, do que estudo acadêmico. Eu, por exemplo, escrevo e mantenho-me quieto, no http://www.brejodoescarnio.blogspot.com apenas vejo-me concreto ao invés de manter-me um arquivo de computador ou páginas na gaveta. É triste pois isso se reflete na vida de todos os brasileiros, que leem cada vez menos.
Como estudante das literaturas inglesa e alemã em um estabelecimento de ensino superior nos Estados Unidos, digo que Epstein não apenas está “certo”, mas que, também, os intelectuais que ele menciona (especialmente Lionel Trilling, por quem tenho grande admiração) não são sequer lidos mais. Quer dizer, além do crítico acadêmico atualmente considerar a literatura como mera questão acadêmica, estudantes sequer lêem críticos “das antigas”. Nos EUA, os livros de críticos maravilhosos como Trilling e R.P. Blackmur, Harry Levin e Hugh Kenner, outrora bastante conhecidos, hoje atraem a atenção da poeira de bibliotecas públicas e acadêmicas. Os únicos intelectuais dessa safra que ainda encontram algum interesse são H.L. Mencken e Edmund Wilson.
Harold Bloom estava certo quando meteu o pau na geração dos anos 90 na introdução ao seu “The Western Canon”. Hoje vê-se isso.
William, obrigado por postar a citação do Pedro Sette-Câmara, um tradutor de talento, de bom gosto, ainda jovem e imensamente inteligente. Ele está falando da situação da academia de Letras no Brasil, mas vejo que o problema aqui é similar.
“Dado que vamos morrer e que o tempo é curto, em que devo investir meu tempo e minha atenção?”
Sugiro àqueles que tiverem a oportunidade, que compareçam a uma aula de literatura dada por um professor de algum departamento de Inglês aqui nos EUA. A resposta à pergunta do Pedro será multiforme, mas parecerá com algo assim: “Canonizar é excluir, portanto é racismo”; “Canonizar é excluir, portanto é sexismo”; “Canonizar é mera expressão da vontade de poder, e não tem um centro semântico que possa ser legitimizado por discurso algum”; “Canonizar é excluir, portanto expressa a opressão da classe burguesa sobre a classe operária”. E por aí vai.