Este artigo de Laura Miller no “Guardian” (em inglês, acesso gratuito) é o melhor que leio em muito tempo sobre o (já) velho tema do impacto que o mundo digital exerce sobre a literatura. Uma das fundadoras da revista eletrônica Salon.com e jornalista de prosa fina, Miller parte de E unibus pluram, o famoso ensaio de David Foster Wallace sobre TV x ficção – do qual traduzi um naco e tanto aqui no blog, em três partes, no fim do ano passado – para especular se os autores de “literatura séria” serão forçados, pelo que o meio tem de específico, a enfocar a internet em suas obras de uma forma que nunca enfocaram a televisão, isto é, como uma das vigas mestras do “Modo como vivemos hoje”. Longo e cheio de boas tiradas, o artigo aposta que sim e diz que isso já começa a ocorrer, citando entre outros os últimos trabalhos de Jonathan Lethem, Gary Shteyngart e Jennifer Egan – este, A visit from the goon squad, recém-nomeado finalista do prêmio do National Book Critics Circle. Abaixo, alguns trechos do artigo de Miller:
…o romancista americano é acossado por dois imperativos cada vez mais contraditórios. O primeiro decorre da norma de retratar o “Modo como vivemos hoje” – uma frase cuja origem no título de um romance de Trollope foi quase inteiramente obscurecida por seus incontáveis empregos em resenhas e blurbs. Pode ser um clichê, mas ainda persiste a ideia de que ninguém é mais qualificado para explicar os dilemas da vida contemporânea do que o romancista. Depois dos ataques de 11 de setembro, todos os ficcionistas de algum destaque disseram ter recebido dúzias de ligações de editores de revistas, cada um deles à procura de iluminações e elucubrações que um mercado cheio de jornalistas talentosos não tinha, aparentemente, a capacidade de concatenar por si mesmo.
O que nos leva ao segundo território especial atribuído ao romancista: a profundidade de museu. Quanto mais a literatura se vê empurrada para a periferia da cultura, mais a valorizamos como um santuário contra tudo o que é grosseiro, raso ou comercial nessa cultura. Trata-se de uma capela de profundidade, tão cheia de vida e visitação quanto uma capela propriamente dita. É na literatura que você se refugia quando fica enjoado de divórcios de celebridades, mar de lama político, intrigas administrativas, julgamentos do século, novos produtos da Apple, guerrinhas de internet, troca de mensagens sexuais explícitas e concorrentes do ‘X Factor’ – em suma, tudo aquilo em que e sobre o que o resto da humanidade passa a maior parte do tempo pensando e conversando.
Se as duas missões parecem incompatíveis, é porque são mesmo. Para abarcar ambas, como [David Foster] Wallace ambicionava, você precisa derivar o Eterno de uma série de Agoras frívolos, e em seguida convencer seus leitores de que está lhes dando o que eles querem ao lhes apresentar exatamente aquilo de que tentavam escapar quando vieram procurá-lo. Não admira que os romancistas americanos sérios tenham achado mais fácil se esquivar por completo daquela competição do “Modo como vivemos hoje”, principalmente quando o inimigo da vez era a televisão.(…)
As vítimas da TV, conforme as retratam seus críticos tradicionais, são marretadas até virarem engrenagens mudas e uniformes, e depois vendidas como consumidores dóceis para a Madison Avenue, suas individualidades sufocadas, suas verdades interiores silenciadas. Mas e se, com chegada de um novo meio que permite a todo mundo expressar suas verdades mais secretas e supostamente únicas, viermos a descobrir que milhares e milhares de pessoas estão dizendo mais ou menos a mesma coisa com mais ou menos as mesmas palavras? E se a individualidade que julgamos tão preciosa se revelar indistinguível da individualidade de incontáveis outros? Quão individual será ela, então? E se na verdade o “cascalho vulgar da banalidade” formos nós?
(…) Num mundo em que todo mundo é um crítico porque, do contrário, não teria existência plena, não é inevitável que um dia comecemos a resenhar uns aos outros? O [personagem] Lenny de [Gary] Shteyngart, que acabou de voltar a Nova York depois de um ano em Roma, luta para se atualizar com as últimas tecnologias sociais, aterrorizado pela ideia de que perderá o emprego se parecer velho e defasado. “Aprenda a dar notas a todo mundo à sua volta”, esbraveja um colega. “Bote suas informações em ordem.” Isso, claro, é uma reciclagem das instruções atordoantes que todo romancista recebe de seus editores hoje em dia: “Você tem que estar no Twitter, no Facebook, blogando”. O fato de que escritores conseguem escrever livros precisamente porque não gastam muitas horas de seu dia online tende a se perder na caça de novas maneiras de turbinar as vendas.
8 Comentários
Li sua tradução do DFW e gostei muito. O que me veio então foi a espectativa de encontrar um ensaio desse tipo, sobre as transformações em andamento geradas pela internet. Pena ser todo em inglês.
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A perda da qualidade da literatura, ou talvez da mudança de paradigmas, é somente uma das consequências dos nossos dias. Ou,quem sabe, dessa velocidade com que a Internet nos lança a todos, todos os dias. Fica difícil se isolar para escrever; de alguma forma a gente tem que ficar um mínimo antenado, e é esse mínimo que nos afeta até a medula: o tempo, necessário, que se gasta hoje em dia na Internet – mesmo para os externautas.
Caramba, a Laura conseguiu encapsular perfeitamente a angústia do escritor externauta, como disse o Marcelo. Gostaria de ler o artigo completo.
🙁
Ah, agora que reparei no link. Valeu, Sérgio!
Que trabalho que o DFW me deu… foram duas semanas brigando com o Brief Interviews. E ainda tem coisa sendo digerida. Mas fiquei com a impressão de que, à parte os muitos méritos, uma hora cansa, dá uma sensação de artificialidade esquisita. Não sei se são os jogos de meta-literatura ou o que.
Otimista com a internet, eu? | Todoprosa - VEJA.com