Primeiro foi uma pergunta do mediador Rosel Soares na Festa Literária Internacional de Cachoeira (BA), há duas semanas, sobre a capacidade que a literatura teria ou não teria de nos transformar em pessoas melhores. Em seguida, devido a uma série de viagens ligadas ao lançamento do meu novo livro, vieram os repetidos encontros com livrarias de aeroporto, essas lojas peculiares – e no meu caso praticamente inúteis – que tendem a concentrar seu estoque em autoajuda, elevação espiritual, gerenciamento, picaretagem explícita e outros gêneros com títulos imperativos: “Faça”, “Seja”, “Não faça”, “Não seja”…
Finalmente, esta semana, dois golpes de misericórdia: dei uma entrevista por telefone a um programa da ótima TV universitária de Caxias do Sul (RS), sobre os prós e contras da autoajuda na formação de leitores, e tropecei num artigo imperdível da revista “New Yorker” chamado “Deve a literatura ser útil?” (em inglês), no qual Lee Siegel – o mesmo crítico que já andou levando aqui uns cascudos por apregoar a “morte do romance” – questiona com lucidez o quase onipresente discurso da “empatia” como justificação para a literatura.
Faz alguns anos que, assediados por críticos e não-leitores (categorias, curiosamente, muitas vezes superpostas) que lhes esfregam na cara sua crescente irrelevância cultural, muitos escritores vêm adotando uma defesa baseada no estímulo que a ficção daria às faculdades empáticas do leitor. Alegam que as narrativas inventadas aguçariam em quem as lê a capacidade de imaginar o outro, conceber o diferente e, portanto, ser mais compreensivo, democrático, compassivo, humano.
O argumento, além de bonito, é daqueles que parecem fazer sentido – acho provável que, em algum nível, faça mesmo. O escritor israelense Amós Oz formulou-o assim numa entrevista que me concedeu há dois anos no Rio:
Considero a curiosidade uma virtude moral. Uma pessoa curiosa é melhor do que uma pessoa não curiosa, porque a curiosidade implica certa empatia, a capacidade de sentir como o outro sente. É por isso que a literatura é um dos antídotos contra o fanatismo.
O problema começa, segundo Siegel, quando se toma o discurso da empatia como razão de ser da literatura. Citando dois estudos “científicos” recentes que alegam ter comprovado com estatísticas que a leitura de ficção traz mais benefícios sociais do que a de não-ficção – porque, justamente, capacitaria melhor as pessoas para a compreensão do que vai na cabeça e na alma do próximo –, o crítico inverte sabiamente o raciocínio para expor como derrota da ficção o que parece uma vitória:
Em vez de proclamar a superioridade da ficção sobre as habilidades práticas que seriam conferidas pela leitura de não-ficção, os estudos sugerem que os efeitos práticos são um parâmetro indispensável pelo qual as virtudes da ficção devem ser julgadas. Ler ficção é bom, segundo esses estudos, porque transforma você num agente social melhor. (…) Os americanos sempre se sentiram desconfortáveis com qualquer atividade cultural que não conduza a resultados palpáveis.
Bingo. Siegel vai ainda mais longe e faz uma provocação brilhante, embora questionável: separa de forma radical empatia de compaixão ao dizer que algumas das pessoas com maior capacidade de compreender emoções e pensamentos alheios que ele conhece são executivos e advogados – que, como se sabe, não necessariamente usam tais habilidades para o bem do próximo.
Seja como for, o ponto fundamental me parece ser um só: a melhor literatura, como toda arte, não será nada se não nascer absolutamente inútil e livre. Depois disso, tudo bem, pode ganhar um milhão de aplicações práticas ao gosto do freguês. Inclusive, vá lá, a de aprimorar moralmente o leitor.
No entanto, como lembra Siegel, a própria literatura sabe que não nasceu para boa samaritana. Sabe tão bem que levou alguns de seus mais célebres personagens a se perder para sempre nos labirintos da leitura: D. Quixote e Emma Bovary comprovam que ler é muito, muito perigoso. Mas só um leitor tacanho diria que todo o seu propósito no mundo é nos fazer tal alerta.
10 Comentários
Ler é muito, muito, muito instigante. Mas pode ser também perigoso: muito perigoso pra burrice – a leitura pode matar a burrice! Um dia li na VEJA: quem lê por prazer entende melhor o mundo e a si mesmo. Pura realidade. Se tivéssemos aprendido a ler seriamente no século XVIII, se os brasileiros daquela época tivessem se preocupado verdadeiramente com todo tipo de leitura, o Brasil hoje seria um país diferente, mais próspero.
Entre a ficção e a não-ficção, vejo que as “Escrituras” cai direitinho na polêmica. Por quê? Porque as Escrituras são consideradas como ficção e não ficção. Servem como parãmetro para os de lá e os de cá. Tem de tudo ali, e quando escolhidas para uma literatura de romance ou poesia, a ficção poderä virar não ficção. Ou a não ficção poderá virar uma ficção. Se vai ou não ajudar ou tornar melhor a quem lê, vai depender muito, pois sendo as Escrituras, pode dar raiva no leitor, que dependendo vai até queimar os escritos.
Mas quem disse que as Literescrituras são para ajudar? Elas são para abrir os olhos…e an passant, os ouvidos…
Para “agregar valor” à conversa, rs, uma citaçãozinha do Barthes que tem (um pouco) a ver: “Nada mais deprimente do que imaginar o Texto como um objeto intelectual (de reflexão, de análise, de comparação, de reflexo etc.). O texto é um objeto de prazer”. Penso que se tomarmos prazer de forma ampla (incluindo nele o (des)prazer do incômodo, do susto, do nojo etc), e se tomarmos texto por texto-literário (sei, é subversão após subversão)… mas enfim: acho que temos alguma coisa aí.
Temos sim, Ewerton. Um abraço.
A “compreensão do que vai na cabeça e na alma do próximo” é, como corretamente explanado, o cerne da empatia, e não da compaixão, que, a meu ver, é o sentimento nascido a partir desse conhecimento. Assim, nem toda empatia gera compaixão, porque se colocar no lugar do outro não é se compadecer do outro. Assim, concordo com o fato de que a literatura deve nascer livre de amarras e objetivos pre-estabelecidos e que ter um objetivo não é o objetivo da literatura. Porém. como leitora que sou, não fico inerte ao que leio, sou transformada, pela leitura, e essa transformação engloba sim a empatia, assim como engloba julgamentos morais dos comportamentos dos personagens e questionamento de como eu agiria naquela determinada situação, concordâncias, discordâncias, tudo inerente a condição de ser pensante.
Penso que a Literatura não deve ter nenhum fim específico. Aliás, Literatura, como a Filosofia, a princípio, são inúteis. O que o receptor faz com elas é o que importa. Além disso, não acho que a literatura seja algo intrinsecamente bom. Os maiores genocidas do século passado, Stalin, Hitler, Mao Tsé-Tung, eram ávidos leitores. É bom ter isso em mente.
Agora só falta desvendarmos a utilidade da arte contemporânea.
Dúvida “tostines”: as pessoas desenvolvem maior capacidade de empatia porque leem literatura ou leem literatura porque têm maior capacidade de empatia? Abraço.
“Qualquer fim moral, quer dizer, de interesse por parte do artista, mata todas as obras de arte.” Stendhal