Estou convencido de que os livros digitais são uma nova bolha tecnológica, e de que ela vai estourar nos próximos 18 meses. Eis a razão: a publicação digital é inextricavelmente ligada às estruturas do marketing nas redes sociais e ao mito de que a mídia social funciona para vender produtos. Não funciona, e só agora começamos a ter estatísticas verdadeiras sobre isso. Quando o marketing das redes sociais entrar em colapso, destruirá a plataforma na qual se baseava o sonho de uma indústria formada por escritores autopublicados.
Em sua tentativa de demolir no “Guardian” de hoje (em inglês) a lógica da autopublicação digital – e não a do livro digital em si, embora o trecho acima não deixe isso tão claro – Ewan Morrison apresenta números desconcertantes e compra briga com muita gente, inclusive o brasileiro Paulo Coelho, um defensor da publicação gratuita na internet como estratégia para escritores se fazerem conhecidos do público.
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Depois de viajar a Cuba, o escritor argentino [Julio Cortázar] iniciou uma lenta transformação. Pouco a pouco, ele deixou de buscar uma revolução cultural vanguardista que mudasse a vida e começou a defender as revoluções políticas que transformavam as sociedades. Cuba preencheu um vazio político que havia em sua vida e do qual antes não se envergonhava. A partir de 1968, ele se converteu em um militante ativo, convidado habitual a conferências e fóruns em apoio às revoluções que incendiavam a América Latina. Sua escrita também mudou. Em 1973, ele publicou o “Livro de Manuel”, um romance com estrutura vanguardista, mas com um conteúdo claramente ideológico. A fantasia deixava de iluminar as vidas surrealistas de seus personagens e começava a avivar a utopia latino-americana. Mas qual projeto tinha mais opções de triunfar? O dos surrealistas que pretendiam alterar as consciências e as vidas, ou o dos revolucionários que queriam transformar as estruturas do Estado? Cortázar morreu em 1984, quando ainda se vislumbrava a possibilidade de a revolução marxista transformar o mundo. Se tivesse vivido mais cinco anos, talvez houvesse percebido que a verdadeira revolução que mudou a vida no Ocidente foi outra, a vanguardista, a que incitava a ter uma existência beat, surrealista e apaixonada.
O antropólogo e ensaísta colombiano Carlos Granés publicou no Sabático um belo artigo sobre as raízes surrealistas (tardias) do escritor argentino Julio Cortázar, a propósito da reedição de “O perseguidor” pela Cosac Naify.
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Dickens é um estilista tão brilhante, sua visão de mundo tão idiossincrática e no entanto tão reveladora, que seria possível afirmar que seu tema é seu tratamento único de seu tema, num eco daquela frase de Mark Rothko, “O tema da pintura é a pintura” – a não ser, claro, pelo fato de que o grande tema de Dickens não era tão subjetivo nem tão exclusivista, mas incluía tanto do mundo quanto ele conseguisse abarcar. Se a prosa de ficção de Dickens tem “defeitos” – excessos de melodrama, sentimentalismo, tramas forçadas e finais felizes fabricados – trata-se de defeitos de seu tempo, ao qual, mesmo com toda a sua grandeza, Dickens não resistia, por não ser um espírito rebelde; no fundo ele era um artista das multidões, na linha do entretenimento teatral, sem nenhum interesse em subverter as convenções do romance como fariam seus grandes sucessores D.H. Lawrence, James Joyce e Virginia Woolf.
No “New York Review of Books”, a escritora americana Joyce Carol Oates resenha (em inglês) a recém-publicada biografia Charles Dickens: a life, de Claire Tomalin, e me faz mergulhar num exercício imaginativo provavelmente vão, mas irresistível: quais seriam os defeitos da grande literatura do nosso tempo, aqueles que só ficarão nítidos para os críticos do futuro?
6 Comentários
Acredito que os defeitos da literatura contemporãnea seriam os mesmos da arte contemporãnea: a adoção da (antiga) subversão como padrão, sem perceber que a ousadia dos “ismos” seus respectivos “pós” há muito já virou convenção. Acho que a piada dos críticos do futuro será debater como nós não percebemos que estávamos apenas trocando e embaralhando paradigmas.
Boa aposta, Alexandre.
Em tempo: estou sem circunflexo no teclado, daí o “contemporãnea”.
Eu já estou viciado em livros e revistas digitais! só acho um absurdo ainda a assinatura digital custar o mesmo preço que uma assinatura impressa! com certeza assinaria mais revistas se tivesse um preço melhor!
Interessante a pergunta! Primeiro, o que seria a grande literatura do nosso tempo? Joyce, Musil e outros mestres do século passado? Ou seria essa expressão um vácuo a ser preenchido ainda? Eu acho que os críticos do futuro verão que os escritores de nosso tempo ficaram perdidos no redemoinho da tecnologia e da mídia de massa: perdendo audiência, fizeram uma literatura construída pela linguagem imposta por tais elementos do nosso tempo, e portanto incapazes de revelar a brecha onde tal linguagem (de jargões da tecnocracia, de um sistema acadêmico dominado pela mentalidade positivista, e da indústria do entretenimento) mostra-se insuficiente para a compreensão da realidade. Não, eu não acho que o papel da literatura seja resolver problemas, mas toda a grande literatura revela uma dimensão de problemas. Como escreveu o genial e esquecido R.P. Blackmur em 1935, “it adds to the stock of available reality”. Os grandes escritores do nosso tempo, para serem grandes, terão que encontrar meios para botar a língua onde ela precisa estar. No momento em que um livro se parece com o anúncio dele numa revista, a literatura está morta. É óbvio que esse é um tópico delicado e extenso, e é claro que há fatores extraliterários, por assim colocar, que precisam entrar na equação. Mas acho que a literatura de nosso tempo tem um problema muito maior do que ser qualitativamente “boa” ou “ruim”: ela é irrelevante, e abundante.
Sérgio,
Acho que caberia especificar o que seria a “grande literatura do nosso tempo”. Falamos de Jean Genet e Norman Mailer ou de Dan Brawn e Carlos Ruiz Zafón? Pois confesso que fui enganado por Zafón nas primeiras páginas de O Jogo do Anjo. Os críticos do futuro se debruçarão sobre J. M. Coetzee ou J. K. Rowling? Ou ainda sobre os milhões de microescritores (ou não tão micro, e nem tanto escritores) que narram o nosso cotidiano nos twitter e blogs da vida? Milhares de sentenças de 140 caracteres, afinal, compõem uma grande literatura ou são somente peças desconjuntadas de um mundo transformado em enorme quebra-cabeça?
Vem-me agora a questão: escritores de todas as épocas deixaram para a posteridade um retrato da sociedade em que viviam. Um leitor inadvertido do futuro, pegando um best-seller de nosso tempo pode pensar que vivíamos rodeados de vampiros, bruxos e zumbis!