A discrepância aparentemente aberrante da comparação entre o escritor e o jogador de futebol contém nela mesma o xis do problema: ambos são necessários para que se formule a trama de um país mal letrado e exorbitante, cuja destinação passa pelas reversões entre a “alta” e a “baixa” cultura, pelo confronto e pelo contraponto das raças, pela palavra e pelo corpo, e cuja “formação” não poderia se dar apenas na literatura: o ser brasileiro pede minimamente – para se expor em sua extensão e intensidade – a literatura, o futebol e a música popular. (Aliás, uma certa intangibilidade enigmática, comum aos dois, pode ser reconhecida também em João Gilberto.)
Se Machado de Assis tornou-se quase inseparável – depois da interpretação de Roberto Schwarz – do equacionamento das “idéias fora do lugar”, isto é, dos desnivelamentos e disparates entre a escravidão cotidiana e a pretensão universalizante do liberalismo burguês que pautou as nações modernas, o futebol brasileiro e Pelé são inseparáveis do “lugar fora das idéias”, o vetor inconsciente por meio do qual o substrato histórico e atávico da escravidão se reinventou de forma elíptica, artística e lúdica.
Os ensaios de fôlego que compõem o recém-lançado “Veneno remédio: o futebol e o Brasil” (Companhia das Letras, 448 páginas, R$ 41), de José Miguel Wisnik, têm algo do estilo excessivo e cheio de firulas de um driblador brasileiro típico na ousadia com que o autor se atira contra beques parrudos e violentos. Com ferramentas barrocas, algumas até então inexistentes e que o driblador-prosador se vê obrigado a fabricar na hora, trata-se de furar o histórico ferrolho que condenou o pensamento e o futebol a se mirarem sobre um abismo por toda a eternidade.
Acusar o livro de “pseudo” é fácil. Fácil demais. Em vez de se restringir à sociologia do esporte, a única ponte de tráfego mais intenso que a academia construiu entre os dois lados do abismo, Wisnik se lança a um repertório frenético de jogadas que retira ora da filosofia, ora da crítica literária, ora de trás da orelha. O risco que assume ao tratar o futebol como fato estético tem dois gumes: de um lado, desagrada os torcedores que se esbaldam naquilo que o mais belo jogo do mundo teria de profundamente antiintelectual; do outro, pode enfurecer os próprios intelectuais, quase sempre divididos entre os que cultivam um nojinho ressentido pelo esporte de massa e os que o fruem de forma irrefletida, como um bem-vindo parêntese irracional numa vida repleta de palavras.
A essa altura, nem sei se preciso acrescentar, mas acrescento talvez como firula, que o livro de Wisnik é uma delícia. Não vence de forma categórica a difícil partida em que se lança, mesmo porque se expõe demais na defesa, mas dá espetáculo. A tal ponto que a edição dedicada à reflexão artístico-filosófica sobre o futebol que o “Babelia” publicou neste sábado, chamada “Pensar com os pés” (acesso livre, em espanhol), já nasceu com o grave defeito de não fazer referência a “Veneno remédio”. Quem manda esses espanhóis acharem que podem falar de futebol sem olhar para o Brasil…
Vale a pena dar uma olhada no “Babelia” mesmo assim, claro. É eloqüente a forma como Ray Loriga descarta qualquer possível relação entre futebol e literatura em sua crônica:
Alguns barcos têm três mastros e o gol também, aí terminam as semelhanças entre os romances de Joseph Conrad e o futebol. Nós que desfrutamos de ambas as disciplinas gostaríamos que se parecessem mais e freqüentemente forçamos metáforas que criam pontos de travessia entre nossas duas grandes paixões, mas elas não deixam de ser isso, metáforas forçadas. Talvez seja melhor assumir que se trata de dois amores distintos e cuidar para que não se encontrem nunca, como quem tem uma esposa na cidade e uma amante no interior…
Espirituoso, sem dúvida. Mas Wisnik o escalaria no papel de beque parrudo.
39 Comentários
Todos loucos … cada louco em seu lugar…………
Sem querer ser chato, porém…
“A discrepância (…) da comparação entre o escritor e o jogador de futebol (…)”
Discrepância da comparação? Não seria a discrepância entre escritor e jogador de futebol? Melhor ainda: não seria discrepância entre a arte do escritor e a arte do jogador de futebol? Como é que a comparação, ela própria, pode ser discrepante?
Confesso, mea culpa, a imensa resistência que tenho a autores que cometem esses simplórios lapsos gramaticais.
Aliás, a tradução de Eric Nepomuceno do livro “Pedro Páramo” custa R$ 46,00. Cinco reais a mais que o livro do Wisnik. O gasto adicional, não tenho dúvida, será recompensado.
E já que foi citado, lembro que Joseph Conrad estará “em exposição”, na Galeira Manuel Bandeira, da ABL, a partir do próximo dia 5/6.
Rafael, me desculpe, mas acho que é pura implicância apontar impropriedade vocabular aí. Sim, é possível dizer que a comparação traz embutida uma discrepância, ou seja, uma assimetria, um desnível. A que acomete sua comparação entre Wisnik e Rulfo é um ótimo exemplo.
Sérgio,
Concordaria inteiramente com você se a frase fosse: “a comparação entre o escritor e o jogador de futebol revela uma discrepância (…)”. Pois aí a relação entre antecedente e conseqüente estaria adequadamente estabelecida. Não me parece o caso na construção do Wisnik.
E concordo sim com o desnível que separa Rulfo e Wisnik.
vocês não acham “discrepância” uma palavra meio feia?
Engenhoso, Rafael, mas eu me referia, claro, à impropriedade de comparar um ensaísta vivo com um romancista canonizado. Um tipo de assimetria que o pessoal costuma chamar de “bananas com laranjas”.
Feio mesmo é o verbo, André. O Houaiss adorava se levantar nos debates e bradar: “Discrepo!”
“eu discrepo, tu discrepas, ele discrepam”. péssimo verbo. ainda bem que a língua é viva e muda, criando novas alternativas. abraços!
“muda”, na frase, também ficou péssimo… por favor, mude para “se transforma”, ou “se modifica”.
O que o peixe disse a peixa????
me come
Se o preço da laranja e das banana for quase igual e meu dinheiro não permitir senão a aquisição de uma fruta, a comparação não será imprópria…
coma-me!
Acho que agora entendi, Rafael. Mas se o cara estiver numa livraria, morrendo de fome, com o dinheiro contado, em dúvida entre o livro de Rulfo e o de Wisnik, deve esquecer os dois e correr para o café.
Vem cá, ninguém aqui gosta de futebol, não?
Mas claro, Sérgio. Meu Galo, sob comando do Gallo, finalmente ganhou a primeira no Brasileirão. Com o Geninho bem longe, agora seguimos rumo a Tóquio-2009 😛
Acabo de chegar da Travessa, onde observei que na estante dos lançamentos, além do livro do Wisnik, podem ser encontrados pelo menos mais uns 2 sobre futebol (isso sem contar o Sonho dos Herois, do Bioy Casares, que, ao folhear, vi que cita carnaval e futebol).
Saudações tricolores!
Caro Sérgio.
É o melhor e mais sofisticado livro já escrito no Brasil sobre futebol, segundo a opinião do Idelber Avelar (Biscoito Fino e a Massa).
O autor é um dos maiores intelectuais do país e gosta e entende de futebol. Afinal, Wisnik nasceu e viveu em Santos e assistia o Pelé jogar toda semana.
O livro está incluído na minha lista de prioridades.
Um abraço,
Cléverson.
Cléverson, o mais “sofisticado” é provável, mas melhor que “O negro no futebol brasileiro”, de Mario Filho, nem em sonhos. De qq forma é um ótimo livro, sim. Vou gostar de ouvir a sua opinião quando o ler.
O livro vem bem a calhar nesta minha breve carreira de jornalista. Vivo oscilando entre as editorias de cultura e de esporte. Como era de se esperar, sofro da implacável cobrança por coerência, que vem mais de mim mesmo do que de qualquer outro. Bem da verdade, acho que não há coerência no prazer. Do texto do Wisnik, juntando com um artido dele na Piaui do mês passado, também sobre futebol, concluo que o cara se diverte muito com o que escreve. Afinal, se alguém quiser eleger o o futebol, assim como Sartre elegeu a existência ou Kant a razão, que o faça, porque ninguém pode provar que esses dois não estivessem também apenas se divertindo.
Ah, e já que o assunto é futebol, uma pergunta de ordem metafísica: quem fechou o vestiário do Botafogo, fazendo com que André Luís fosse retirado pela torcida do Náutico, e quem deixou o vestiário do Corinthians aberto, provocando a queda do Lulinha ?
Sérgio, permita-me lembrar o livro do amigo Claudio Nogueira “Futebol Brasil Memória: de Oscar Cox a Leônidas da Silva (1897-1937)” (Editora Senac Rio, 2006). Segundo o autor (que tem o defeito de ser vascaíno 🙂 ), terá continuação.
Agora, no campo da ficção, realmente não consigo me lembrar de um bom exemplo.
Ah, claro, me lembrei daquela coleção camisa 13 (acho que era esse o nome). Cd escritor escrevendo sobre um clube. Li apenas uma parte do livro do Nelson Motta sobre A Máquina de 1976. Foi, como bem lembrarão, uma espécie de “Amor expresso” da bola.
De futebol e literatura , minha referência é o Nelson Rodrigues… mas vou conferir o livro. Gosto de metáforas forçadas…as básicas a gente já conhece…tanto que nem parecem metáforas.
Em se tratando de futebol, como uma boa botafoguense otimista, prefiro os oxímoros às metáforas.
Espero que o Wisnik vá além do que esse trecho sugere. Me parece que ainda não produzimos obras admiráveis sobre futebol porque nossos melhores autores não cultivaram aspirações futebolísticas — foram no máximo torcedores fanáticos. É um assunto tão complexo (falo sério) que dificilmente será compreendido apenas pela observação — ainda que se tenha assistido ao Pelé jogar. Provavelmente é possível dizer isso sobre qualTalvez possamos dizer isso de tudo
Não tenho como avaliar o livro do Wisnik ainda, mas o trecho citado me soou mais Denilson que Romário, se é que vocês me entendem.
O comentário saiu antes da hora. Desculpem. Repito:
Espero que o Wisnik vá além do que esse trecho sugere. Me parece que ainda não produzimos obras admiráveis sobre futebol porque nossos melhores autores não cultivaram aspirações futebolísticas — foram no máximo torcedores fanáticos. É um assunto tão complexo (falo sério) que dificilmente será compreendido apenas pela observação — ainda que se tenha assistido ao Pelé jogar. Provavelmente é possível dizer isso sobre qualquer assunto, mas acredito que o futebol se singulariza de alguma forma nesse espectro.
Não tenho como avaliar o livro do Wisnik ainda, mas o trecho citado me soou mais Denilson que Romário, se é que vocês me entendem.
O interessante da matéria do BABELIA é que, no fim, lista-se uma seleção de livros sobre futebol. Todos, claro, em espanhol (alguns publicados na Argentina e no México). E, claro, deixa-se de fora “O negro…”, de Mario Filho, as coletâneas de crônicas do Nelson Rodrigues e do João Saldanha, a biografia do Garrincha por Ruy Castro, a antologia do Flávio Moreira da Costa que reúne contos sobre futebol escritos por Rubem Fonseca, Sérgio Santanna, João Ubaldo, Sergio Faraco, João Antonio e outros. Será por causa disso que faremos o acordo ortográfico, Sérgio?
Adoro futebol e adoro literatura. Não vejo nenhuma necessidade de essas artes se cruzarem. Agora, o Wisnik é um cara gentefiníssima, alegre, uma pessoa de muito alto astral. Não estou planejando ler esse livro, não, mas duvido que alguém se aborreça lendo Wisnik.
Álvaro, entendo que a invisibilidade internacional das letras brasileiras pareça um pouco mais chocante quando se trata de futebol, um tema em que temos competência reconhecida. Por outro lado, nenhum desses livros, com a possível exceção do Garrincha, tem um bom apelo internacional. As paixões futebolísticas tendem a ser paroquiais ou, quando muito, nacionalistas, não? Mas falando da invisibilidade no sentido amplo, acredito que o acordo ortográfico possa ter algum impacto positivo, sim. Em cinqüenta anos ou mais.
Não acredito que ninguém conheça “Terceiro tempo de jogo”, de Roberto Gomes. Ah, ele é de Curitiba. Deve ser por isso…
Ambos são gênios imortais….
Na lista básica do Álvaro faltam pelo menos dois grandes: “Gigantes do futebol brasileiro”, João Máximo e Marcos de Castro, e “Drama e glória dos bicampeões”, Armando Nogueira e Araújo Neto.
Agora, o Sergio poderia explicar por que no “País do futebol” tenham sido escritos tão poucos romances com centro no tema.
Abrs
Lembrando: hoje, centenário do nascimento de Mário Filho
Zé Paulo, meu caro, boas lembranças. Mas isso que você aponta eu acho natural. Onde estão os grandes romances americanos sobre beisebol? E os grandes romances japoneses sobre sumô? Devem existir, mas pelo visto não são muito memoráveis. Acho um exagero a teoria da mulher e da amante que o espanhol defende aí no post, mas talvez o esporte, que é em si uma narrativa, não seja mesmo muito fácil de combinar com literatura. Um abraço.
“Onde estão os grandes romances americanos sobre beisebol?”
Tá, ok, concordo com o seu argumento, Sérgio. Mas nenhum escritor brasileiro fez com sequer uma pequena parcela do universo futebolístico nacional o que Don DeLillo faz com uma bola de beisebol no “Submundo”: a transforma em fio condutor de um grande, monumental livro extremamente bem escrito com mais de 600 páginas. Aqui, o mais perto que chegamos disso foi o horroroso, preconceituoso, prolixo e doloroso “O Paraíso é bem Bacana”, de André Sant’Anna (a rima não é culpa minha). Ah, sim, e temos o delicado e muito bem escrito “O Segundo Tempo”, de Michel Laub, que usa uma partida de futebol como pretexto para um comovente romance de formação. E não muito mais, também. Acho estranho que o futebol não aparece tanto nos romances nacionais como um fato da vida, nem tanto como centro de trama, mas como detalhe mesmo, parte de uma existência que os personagens levam. Em Paul Auster personagens discutem jogos dos Mets. Já citei DeLillo e o Submundo. Menciona-se beisebol em Complô contra a América, de Philip Roth, por exemplo. Aqui, tirando Nelson Rodrigues, parece que há uma certa vergonha, como se o futebol nas sagradas obras literárias fosse envenenar a página.
Caro Hefestus, discordo. É verdade que ninguém na ficção brasileira fez pela bola de futebol o que DeLillo fez pela bolinha deles, mas duvido que algum poeta americano tenha cantado qualquer objeto redondo (com a possível exceção da Lua) com a paixão de João Cabral, isto é, “mais que bicho, como mulher”. Acho que, quando se deixa de procurar o futebol como centro da trama, encontramos traços de sobra da presença dele em nossa literatura. Você cita dois autores contemporâneos, e concordo que “O segundo tempo” é um bom livro. Mas Nelson Rodrigues foi além da crônica esportiva e o levou para dentro de sua dramaturgia, Rubem Fonseca e Sérgio Sant’Anna, entre outros, têm contos memoráveis ambientados nesse universo. Do outro lado dessa promiscuidade, Coelho Netto e José Lins do Rego chegaram a ser dirigentes esportivos. Talvez a presença pudesse ser maior, se considerarmos a importância do futebol em nossa cultura. Mas não sei se isso pode ser atribuído a um preconceito elitista dos autores. Mais provável que seja escassez de competência mesmo. Uma vez eu escrevi – e continuo achando isso – que em cada geração de escritores brasileiros dos últimos cinqüenta anos daria para formar um time de onze dispostos a dar as duas pernas (de pau?) para escrever o tal “grande romance brasileiro do futebol” que vivem lhes cobrando.
Acabo de me lembrar que essa discussão sobre futebol e literatura foi a primeira a pintar no recém-lançado Todoprosa, em maio de 2006. O post da época, com participações notáveis de Silviano Santiago e Roberto da Matta, está aqui. Recomendo dar uma olhada.
Além se lembrou do Vianinha (Chapetuba Futebol Clube)? Tá, é teatro, mas Nelson Rodrigues tá na mesma área, perigo de gol.