Nu na banheira, encarando o abismo (um manifesto sobre o fim da literatura e dos manifestos) é o prolixo título de um ensaio apocalíptico de Lars Iyer publicado no 12º número da revista “serrote”, que chega às livrarias semana que vem. Trata-se aparentemente de mais um aborrecido atestado de óbito da literatura, como aqueles que críticos sem conta vêm emitindo – para um departamento onde logo lhe carimbam “arquive-se” – há pelo menos um século. No entanto, o ensaio de Iyer se destaca da produção habitual dos apocalípticos por dois motivos. O primeiro é que é bem argumentado e bem escrito, com paixão e verve, característica respeitada pela tradução de Thiago Lins e que só um verdadeiro amante de literatura (um necrófilo, segundo o argumento do autor) poderia lograr.
O segundo motivo é mais interessante ainda: sendo também ficcionista – é professor de filosofia numa universidade inglesa e autor de dois romances – Iyer acaba deixando claro, na parte final do texto, que discute consigo mesmo. Sua preocupação principal é identificar aquilo que ainda pode ser escrito após a suposta morte da literatura, uma vez que, evidentemente, escrever continua sendo preciso, não apenas para ele como para muitos de nós. É isso que o leva a eleger como seus cicerones pós-apocalípticos três famosos escritores-legistas – Roberto Bolaño, Enrique Vila-Matas e Thomas Bernhard – e encerrar o ensaio com uma lista de conselhos a quem insiste em fazer literatura, que mais uma vez soam como lembretes a si mesmo e que vão reproduzidos abaixo. Tudo muito discutível, claro. Neste caso, isso é elogio.
Utilize uma clareza não literária. Sabe-se que o jogo acabou, que está tudo terminado. O estilo de ‘Os detetives selvagens’ é notavelmente não literário, quase deselegante, apesar de todo o virtuosístico desassossego de suas vozes narrativas. (…) O abismo necessita da clara constância de um testemunho, da sobriedade de uma testemunha no dia seguinte, para lembrar-se do que ocorreu antes. A literatura não é mais o objeto em si, e sim o objeto desaparecido.
Rejeite métodos encerrados, rejeite obras-primas. O anseio de criar obras-primas é uma espécie de necrofilia. A escrita deve estar aberta a todos os lados da vida para que seu esboço – a vida melancólica e farsesca – possa estar presente, saqueando suas páginas. Vila-Matas afirma ser necessário, para qualquer um que escreva um texto ficcional, mostrar a própria mão, permitir que uma imagem de si mesmo apareça. (…) Siga sua própria tolice como pegadas na areia.
Escreva sobre este mundo, independentemente do assunto sobre o qual esteja escrevendo, escreva sobre um mundo dominado por sonhos mortos. Ressalte a ausência de esperança, crença, compromisso ou seriedade elevada. Assinale o passado que nos arruinou e o futuro que nos destruirá.
Deixe claro seu sentimento de impostura. Você não é um autor, não no antigo sentido da palavra. (…) Não há nenhum prêmio para você na literatura, claro que não, nada para sua pompa insensata. Além disso, pouquíssimas pessoas estão lendo de verdade: atente para esse fato também. Ninguém está lendo, idiota! Existem mais romancistas do que leitores. Existem livros demais…
Dê vulto à sua melancolia. Deixe claro que o fim está próximo. A festa acabou.
7 Comentários
Substantivo Plural » Blog Archive » Mais um atestado de óbito da literatura.
Sérgio. Quanta falta nos faz o pessimismo. Palmas para Iyer, não por estar certo, não sei se está, mas pelo desamparo tão bem descrito.
Não suporto ensaios apocalípticos. Paradoxalmente esse me empolgou, dialogo com ele abaixo:
A funcionária da Rede está sozinha no escritório multicolorido. Olha para os lados nervosa, abre a gaveta bem devagar e de lá retira o item profano, a caneta herdada do tetravô. Prazer e medo percorrem seu corpo quando ela se entrega ao fetiche e o risco de ser pega só aumenta a excitação. É imenso o frenesi causado pela formação da letra no papel! A sua letra, produto do movimento do seu pulso, não a letra do Programa.
Terminado o ato, fita o manuscrito arfando, a satisfação sentida é assolada pelo sentimento de culpa. Enxurrada de imagens na mente, a memória de pessoas que por muito menos receberam a pior das punições: o degredo. Ora, não há quem ignore que fora da Rede não há vida, não há mundo.
“Somente o que pode ser postado existe”. A Grande Máxima, como esquecê-la? Como ignorá-la se não lhe sai da cabeça o dia em que a irmã, então com oito anos, mexeu na areia com um graveto e daquilo resultou um “Te amo, mamãe”. Infelizmente passava por ali um guarda que, a fim de fazer respeitar a Grande Máxima, levou a menina.
Volta ao presente e examina o objeto largado na mesa. Pelas suas contas a tinta vai durar até o fim do ano. O que vai fazer depois disso não sabe ao certo. Ouvira dizer de um degredado que usava tinta de impressora antiga, porém nem ousaria fazer como ele, coitado. Esse sumiu mesmo, nunca mais foi visto. Ou será que ainda anda por aí e são os conectados que desaprenderam a enxergá-lo? Afinal, ele já não está na Rede…
Sérgio,
muitíssimo obrigado pelo elogio. O trabalho solitário do tradutor nem sempre é lembrado, muito menos de um modo tão generoso como você o fez. É um grande alívio ser reconhecido como um amante da literatura, principalmente por alguém que também o é.
Um grande abraço.
A necessidade há, sem dúvida. O que observo é que não seria de todo ruim ponderar se se deve escrever e o que se escreverá. A receita de Lars Iyer é perfeita por ser, justamente, guiada pela ciência da desejada imperfeição. Desamparo, sim: esta é a palavra e a condição.
O engraçado disso tudo é que, havendo tal recurso, bem poderíamos enviar esse texto (ao menos o trecho que postaste) em direção ao passado. Ao longo dos séculos, vários e vários escritores se identificariam com ele. Pensando assim, é bom mesmo que a literatura morra.
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