No 120o aniversário de nascimento de Manuel Bandeira (1886-1968), sua obra em prosa começa a ser relançada com método em edições caprichadas – e pelo começo. “Crônicas da província do Brasil”, de 1937 (Cosac Naify, posfácio e notas de Júlio Castañon Guimarães, 320 páginas, R$ 48), abre a fila com o requinte típico da editora paulistana, campeã indiscutível na produção de livros como objetos de desejo: capa dura, três versões de capa, fotos internas.
O conteúdo justifica o tratamento luxuoso e promete dar um susto em quem, até compreensivelmente, se acostumou a pensar em Bandeira só como poeta, e dos maiores. Se Rubem Braga era um versejador não mais que curioso, por que alguém imaginaria que o pernambucano tinha na crônica qualquer brilho especial?
Bom, ele tinha. “Crônicas da província do Brasil”, reeditado como volume autônomo pela primeira vez desde o lançamento, é uma coletânea de textos publicados na imprensa. Nem todos podem ser considerados crônicas no sentido estrito da palavra: há ensaios de fôlego erudito sobre patrimônio histórico, críticas literárias, perfis de amigos, um atualíssimo artigo em defesa do jeito brasileiro de falar português, historinhas ligeiras de sabor ficcional – coisa à beça. Em extensão e intensidade, um cardápio variado. E mesmo assim o livro tem coesão, se deixa ler com prazer contínuo, sem sobressaltos.
Quase todos os textos tratam de questões brasileiras, o que ajuda. Refletem a cultura nacional num momento em que, saída da crise adolescente de 1922, ela lutava para tomar posse de sua fugidia maioridade. Não é uma coincidência que, como aponta Castañon no posfácio, “Casa grande & senzala” seja da mesma época (1933) e Gilberto Freyre tenha sido um grande incentivador do livro de Bandeira.
O foco no Brasil, porém, não seria suficiente para dar coerência ao saco de gatos. O ingrediente mágico, talvez o único que se repete em todas as páginas de “Crônicas da província do Brasil”, é a prosa de Manuel Bandeira, com sua fusão profundamente pessoal – e artisticamente difícil – entre uma certa elegância clássica e um molejo brasileiro modernista. O estilo acaba se casando tão bem com a visão que o autor apresenta do mundo, e sobretudo do Brasil inserido no mundo, que a sedução dessa voz lhe permitiria incluir praticamente qualquer tema na conversa. Bandeira era bom de prosa em mais de um sentido da palavra.
Era inseguro também. Em carta de 1930 a Mario de Andrade, disse viver, como prosador, “desconfiado que estou dizendo bestidades, bobagens, lugares-comuns”, porque o desafio “pede inteligência, pede cultura, pede reflexão e eu me sinto muito mal preparado…”. O texto abaixo, uma deliciosa crônica-conto, trata de desmenti-lo com todas as letras.
Em tempo: a Cosac Naify planeja lançar ano que vem mais duas coletâneas publicadas pelo Bandeira cronista em vida – “Flauta de papel”, de 1957, e “Andorinha, andorinha”, de 1966 – e outras duas de textos inéditos em livro.
REIS VAGABUNDOS
Juque! o outro não teve tempo de acabar o insulto: um soco bem colocado nos queixos atirou-o por cima de uma das mesas do bar. No meio da confusão, vidros partidos, bebida entornada, um garçon (os garçons gostavam dele) encaminhou o agressor para o mictório, de onde por uma escada de mão se subia a uma soteiazinha, que era depósito de víveres e bebidas. Isso era novidade para ele. Foi só quando os seus olhos se habituaram à meia escuridão do local, que percebeu nas prateleiras as latas de foie gras e mortadela, os queijos, “and lo! creation widened in man’s view”1, a bateria impressionante dos Black Label e dos White Horse ali ao alcance da mão.
— Eta, sabiá da mata! O sol quando nasce é para todos!
Quebrou o gargalo de uma garrafa numa quina de madeira e o whisky começou a rolar dentro e fora da boca. Um desperdício de roquefort completou aquela orgia sem mulheres. Meia hora depois o mesmo garçon que o encaminhara ali, veio avisar que o caminho estava desimpedido.
Desceu na calada e ganhou a rua. Hep! Rapidez e eficiência. Na rua Treze de Maio sentiu que não podia esperar. Desacatou o poste de iluminação. Quando estava assim, a sua idéia fixa era desacatar. Mas tanto era desacatar o ato de provocar um amigo ou desconhecido, como virar uma garrafa inteira de Madeira R ou fazer aquilo no poste, à vista de toda a gente. “Desacatei! Hep!”
No Ventania apareceu o vice-cônsul, maior do que ele, mais corado do que ele, elegante pra cachorro: “Vil burocrata, espancá-lo-ei na via pública!” Mas espancou o quê, foram mas foi beber numa pensão da Lapa, espavorindo as mulheres, afugentando os michês, hep!, enquanto a pianista feia e velha, única pessoa sem medo, mantinha o prestígio da casa atacando com bravura o “Zaraza”. Depois o Lamas até às primeiras claridades da manhã. Só então, porque como a Tristão e Isolda o sol é odioso aos notívagos desta espécie, os dois deixaram o tradicional café do largo do Machado em busca de abrigo.
O vice-cônsul dormia num velho solar do Segundo Reinado, que ficava para os lados da Gávea, próximo da lagoa Rodrigo de Freitas. A quebradeira dos herdeiros ajudada pelo capim reduzira o antigo solar a habitação coletiva e quinze anos deste último regime acabaram arruinando o casarão, hoje desocupado, com exceção de um pequeno quarto no puxado, onde o vice-cônsul se instalara com armas e bagagens. As bagagens eram uma cama de ferro, uma mesa de pinho não envernizada e uma cadeira de assento de palhinha furado; a arma era uma só, uma arapuca de passarinhos, cuja utilidade se verá mais adiante. Havia aos fundos uma boa chácara, onde por favor moravam dois mulatos que não atendiam nunca pelos nomes e sim pelos títulos de sua atividade junto ao vice-cônsul. Eram os secretários nos 1 e 2.
Até às oito horas houve uma tentativa honesta de sono. Àquela hora o vice-cônsul, que sempre cochilara um bocadinho, levantou-se da cama e disse sério para o outro: — “Chegou a hora do ganha-pão!”. O secretário º 1 foi despachado para a cidade com uma carta que bem respondida deveria valer uma nota de vinte. Depois os dois amigos se dirigiram ao fundo da chácara, o vice-cônsul armou o alçapão, que ficou confiado à vigilância do secretário nº 2, enquanto os rapazes voltavam para o quarto a fumar os últimos cigarros. O vice-cônsul sabia que o recurso não falhava. O ganha-pão era seguro.
Com efeito, três quartos de hora mais tarde o secretário nº 2 entrava da chácara trazendo na mão um bonito bem-te-vi laranjeira. Hep! Seguiu-se o preparo do bem-te-vi. O vice-cônsul tomou do bichinho, abriu-lhe o bico e deixou cair uma ou duas gotas de aguardente de bagaceira. O passarinho arregalou os olhinhos e ficou firme, empoleirado no dedo indicador do secretário nº 2, como se estivesse hipnotizado.
— Não venda por menos de dez mil-réis!
O secretário ganhou a rua, veio descendo até Voluntários da Pátria, com o bem-te-vi firme no dedo. Quando passasse por ele um menino acompanhado da mãe, era só oferecer o “bem-te-vi ensinado”. O passarinho passava para o indicador do menino e enquanto durasse o porrinho seria bem-te-vi ensinado. Era sempre assim e foi assim também daquela vez. Quando o secretário nº 2 voltou com os dez mil-réis do bem-te-vi, o vice-cônsul mandou-o comprar ovos, presunto, queijo e cachaça, mais cigarros, e os amigos almoçaram aí pelas duas da tarde, hep!
1 Em inglês, “E vejam! A criação se estendeu à vista do homem”. (NE)
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5 Comentários
E tem o perfil…
O perfil é um post à parte, Paulo.
🙂
Oba! Já deu para sentir o gosto pelo trecho selecionado. Vou me esbaldar.
Covardia imensa Sérgio Rodrigues acaba de cometer. Covardia aqui no sentido pernambucano, quando alguém abusa da fraqueza de um pobre mortal. Quando toca em seu ponto fraco. Assim como o primeiro alumbramento de uma criança. Como falar de Ascenso Ferreira a um “exilado” do Recife em São Paulo, debaixo da fria hostilidade e da garoa paulistana. Covardia arretada. Pois. Em resposta a essa covardia afetiva, aqui vai uma covardia de verdade, de oportunismo puro, de falta de compostura inclusive. Leia o “Cento e vinte anos de Bandeira” no endereço http://www.lainsignia.org/2006/abril/cul_019.htm. Pra completar, essa desculpa covarde: a culpa foi de Bandeira.