O reconhecimento, pelo Vaticano, de que a população muçulmana ultrapassou numericamente a católica fez toda a imprensa ocidental se voltar ao mesmo tempo para Meca, capital espiritual da religião fundada pelo profeta Maomé. Na hora de escrever o nome do pai do islamismo é que começou o descompasso: Maomé virou Muhammad em inglês, Mahomet em francês, Mahoma em espanhol e assim por diante. Como explicar isso?
Numa palavra: transcrição. Em muitas palavras: a técnica de transportar para uma língua, com base na fala, algo expresso em outra, quando esta adota um sistema de escrita diferente. Como o nome original de Maomé é escrito no alfabeto árabe, sua grafia no Ocidente será sempre uma transposição. Esta pode ser feita letra por letra (transliteração) ou com base nos sons. Neste caso, depende das características do idioma que importa o termo, pois é ao perfil sonoro do vocábulo original que se busca ser fiel. Mesmo que a grafia sugira abismos, a pronúncia de Maomé é semelhante à do francês Mahomet e mesmo à do inglês Muhammad – que, só para complicar, segue o método da transliteração.
Qualquer idéia de fidelidade à forma “original” é, portanto, ingênua. Durante anos, a “Folha de S.Paulo” só chamou Maomé de Muhammad. Sob o apego a uma transliteração ortodoxa escondia-se um equívoco: segundo o manual de redação, Muhammad seria a única forma correta, pois “o nome Maomé é considerado ofensivo pelos seguidores do islamismo, por significar o que não é filho de Deus”. Falso. Em março de 2006, o jornal reconheceu o erro e abriu mão do Muhammad que chegava à redação nos despachos das agências internacionais de notícias – em inglês, naturally. Tomou seu lugar a forma consagrada há séculos em português, essa língua orgulhosa, filha legítima do latim, que não precisa dever nada a ninguém.
Publicado na “Revista da Semana”.
7 Comentários
Na literatura clássica portuguesa, o nome de Maomé aparece muitas vezes como MAFOMA e MAFAMEDE.
Sim, Curiango, e também Mafama (má fama?). Houve muitas variações. Mafamético, mafomético e mafamista eram sinônimos/variantes de maometano. Mafamede chegou até, numa acepção portuguesa caída em desuso, a virar sinônimo de “mouro”. Mas vale observar que Maomé, ou Mahomet, não foi um desenvolvimento tardio, tendo convivido desde pelo menos o século 16 com as formas que acabaria por derrotar. Em 1868, Constancio registra o verbete “mafamético, e mafomético”, mas remete a “mahometano” como forma preferencial.
Outra curiosidade: no início do século 18, Rafael Bluteau registra assim o verbete “mahometano”: “que segue a ímpia, & infame ley de Mafoma”. Bluteau era padre.
A língua portuguesa, além de filha legítima do latim, não nos esqueçamos, é afilhada do árabe… e as formas foram adaptadas em Portugal e evoluíram, obedecendo só à lógica da língua, não à da religião muçulmana, que foi expulsa.
De Mahomede, Mafamede ou seja como foi que os moçárabes entenderam o nome do profeta, em português deu em Maomé. Se fosse só transliteração, seria Murrámade.
Fabiano, leia o texto de novo. Maomé é uma transcrição, ou seja, uma adaptação baseada no som, e não uma transliteração. Sua grande semelhança com a transcrição francesa (Mahomet) sugere que os mouros nada tiveram a ver com isso.
Sérgio, mea culpa, você provavelmente tem razão… pode muito bem mesmo ser uma influência francesa, talvez da época em que o francês ditava a moda em Portugal.
Se for assim, creio que isso invalida o meu argumento, com exceção de um ponto: o de que a religião muçulmana parou de influenciar Portugal há muito tempo, e aos termos consagrados hoje são preferidas formas galicismos ou anglicismos. É por isso que cada vez mais se fala em “Corão” para “Alcorão”.
Fabiano, a forma “maumetano” já era registrada em 1572. A influência mais provável é a do italiano Maometto. Seja como for, eu diria que as soluções semelhantes encontradas desde cedo pelas línguas românicas indicam que a influência muçulmana em Portugal simplesmente não entra na história da palavra, nem mesmo como uma influência que se extinguiu.