“O conto da aia” (Rocco, tradução de Ana Deiró, 368 páginas, R$ 48), da canadense Margaret Atwood, é uma curiosa fantasia futurista na linha conhecida como “distopia”, ou utopia às avessas, a mesma de “1984”, de George Orwell, e “Admirável mundo novo”, de Aldous Huxley. O adjetivo “curiosa” se deve ao fato de que a obra soa, em muitos momentos, como uma resposta direta à paranóia americana pós-11 de setembro, embora tenha sido lançada em 1985. Num país que já foi conhecido como Estados Unidos da América, hoje chamado de Gilead, um golpe militar que teve como pretexto a ação de “fanáticos muçulmanos” aboliu os direitos civis em geral – e os das mulheres ainda mais. Não é a primeira vez que o livro sai no Brasil. Com o título de “A história da aia”, foi publicado pela editora Marco Zero em 1987. Mas é inegável que hoje soa mais atual do que na época.
O romance é narrado pela aia (categoria social inferior, destinada exclusivamente à procriação) chamada Offred, que no trecho abaixo encontra uma colega chamada Ofglen. Infelizmente, ao optar por manter os nomes originais, em vez de adaptá-los como fez a tradução da Marco Zero, a edição mascarou a relação de posse que eles contêm: uma é of Fred, “de Fred”, e a outra, of Glen, “de Glen”.
Uma forma vermelha, uma touca de abas brancas ao redor da cabeça, uma forma como a minha, uma mulher de aparência sem graça e desinteressante, de vermelho, carregando uma cesta, se aproxima da calçada de tijolos vindo em minha direção. Ela me alcança e examinamos uma o rosto da outra, olhando pelos túneis brancos de tecido que nos cercam. Ela é a mulher certa.
– Bendito seja o fruto – diz ela para mim, a expressão de cumprimento considerada correta entre nós.
– Que possa o Senhor abrir – respondo, a resposta também correta. Viramo-nos e caminhamos juntas passando pelas grandes casas, em direção à parte central da cidade. Não temos permissão para ir lá exceto em pares. Isso é supostamente para nossa proteção, embora a idéia seja absurda: já somos bem protegidas. A verdade é que ela é minha espiã, como eu sou a dela. Se alguma de nós duas escapulir da rede por causa de alguma coisa que aconteça em uma de nossas caminhadas diárias, a outra será responsável.
Esta mulher tem sido minha parceira há duas semanas. Não sei o que aconteceu com a outra, a anterior. Um belo dia, ela simplesmente não estava mais lá, e esta aqui estava em seu lugar. Não é o tipo de coisa a respeito de que você faça perguntas, porque as respostas não são, geralmente, respostas que você queira conhecer. De qualquer maneira, não haveria uma resposta.
Esta aqui é um pouco mais roliça do que eu. Seus olhos são castanhos. O nome dela é Ofglen, e isso é mais ou menos tudo que sei a seu respeito. Ela caminha com modéstia e gravidade afetadas, de cabeça baixa, as mãos enluvadas de vermelho entrelaçadas na frente, com pequenos passos curtos como um porco treinado andando sobre as patas traseiras. Durante essas caminhadas ela nunca disse nada que não fosse estritamente ortodoxo, no entanto, nem eu. Pode ser uma verdadeira crente, uma Aia em mais do que apenas o título. Não posso correr o risco.
– A guerra está indo bem – diz ela.
– Louvado seja – respondo.
– Tivemos a benção de tempo bom.
– Que eu recebo com alegria.
– Derrotaram mais rebeldes, desde ontem.
– Louvado seja – respondo. Não lhe pergunto como sabe. – O que eram eles?
– Batistas. Tinham uma fortaleza nas Colinas Azuis. Eles o obrigaram a sair de lá.
– Louvado seja.
Às vezes eu desejaria que ela apenas se calasse e me deixasse andar em paz. Mas estou faminta por notícias, qualquer tipo de notícias, mesmo que sejam falsas notícias, devem significar alguma coisa.
Chegamos à primeira barreira de controle, que é como as barreiras bloqueando trechos de estradas em obras, ou escavações de esgotos abertas: um obstáculo de madeira pintado num padrão de linhas cruzadas de listras amarelas e pretas, um hexágono vermelho que significa parar. Perto do portão de passagem há algumas lanternas, que não estão acessas porque não é noite. Acima de nós, eu sei, existem holofotes, presos aos postes telefônicos, para serem usados em emergências, e há homens com metralhadoras nos abrigos de cimento armado no alto de pilares dos dois lados da estrada. Não vejo as metralhadoras nem os abrigos nos pilares por causa das abas ao redor do meu rosto. Apenas não sei que estão lá.
Atrás da barreira, esperando por nos na passagem estreita do portão, estão dois homens, com os uniformes verdes dos Guardiões da Fé, com o escudo de armas nos ombros e nas boinas: duas espadas cruzadas, acima de um triângulo branco. Os Guardiões não são soldados de verdade. São usados no policiamento de rotina e outras funções sem importância, cavar o jardim da Esposa do Comandante, por exemplo, e ou são burros ou mais velhos ou incapacitados ou muito jovens, exceto pelos que são Olhos ocultos.
Estes dois são muito jovens: num o bigode ainda é de fios ralos, no outro o rosto ainda está cheio de espinhas. A juventude deles é comovente, mas sei que não posso me deixar enganar por ela. Os jovens são com freqüência os mais perigosos, os mais fanáticos, os mais nervosos com suas armas. Ainda não aprenderam com o tempo sobre as coisas da vida. Você tem que ir bem devagar com eles.
Na semana passada mataram a tiros uma mulher, bem aqui. Era uma Martha. Estava remexendo em sua túnica em busca do passe, e pensaram que estivesse apanhando uma bomba. Pensaram que fosse um homem disfarçado. Já houve incidentes desse tipo.
Rita e Cora conheciam a mulher. Eu as ouvi falando sobre o ocorrido, na cozinha.
Estavam fazendo seu trabalho, disse Cora. Mantendo-nos seguras.
Nada é mais seguro que a morte, retrucou Rita, em tom zangado. Ela estava apenas cuidando de suas obrigações. Não havia necessidade de matá-la.
Foi um acidente, disse Cora.
Acidentes não existem. Tudo acontece intencionalmente. Eu podia ouvi-la batendo as panelas umas nas outras, na pia.
Bem, de qualquer maneira, alguém vai pensar duas vezes antes de explodir esta casa, disse Cora.
Mesmo assim, retrucou Rita. Ela trabalhava duro. Foi uma morte ruim.
Posso pensar em piores, disse Cora. Pelo menos foi rápida.
Você pode dizer isso, retrucou Rita. Eu preferiria ter algum tempo, antes, sabe. Para botar as coisas em ordem.
9 Comentários
Margaret Atwood é a minha escritora canadense de língua inglesa preferida – Ok, confesso, não conheço muitos autores de língua inglesa do Canadá; conheço mais os franceses. Mas, seja como for, ela é ótima. Gosto imensamente de “Madame Oráculo” e “O assassino cego”. Sem contar o seu livro não-ficcional sobre a escrita, “Falando com os mortos”. Ela consegue em suas obras desenvolver temas seríssimos sem soar chata ou pedante, com a boa leveza de uma contadora de histórias nata.
É interessante … As ditaduras podem parecer sistemas democráticos, ou liberais. As ditaduras militares são induvidosas, lineares e abertas no sentido de sufocar qualquer vento em contrário. Já, no reverso, democracias liberais, tendem a conduzir o sistema pelo afunilamento de interesses e prerrogativas, deixando a base com o ar recheado de pétalas de rosas, pombas brancas e informação à vontade que, misturada na dose certa, só confunde. Ou, então, como a nossa, repleta de caridade (bolsa isso, aquilo e acolá), recheada de terrorismo urbano pseudo-não-controlável, com imprensa livre mas viciada, voto descarado mas obrigatório e todo mundo vivendo no olho do furacão. E, aqui, não é futuro, mas o agora sem rodeios. Os Estados Unidos é uma das melhores ditaduras democráticas que, durante este século, seguramente esquecerá George Washington e trilhará o fundamentalismo político dos fanáticos de plantão. O “sonho americano” vai morrer urrando impropérios e de tal modo, que possivelmente a História não será a mesma, depois da queda. É uma pena, podia ter sido melhor para a Humanidade…
Ficções.
SAINT-CLAIR:
Concordo com você. Li de Atwood o espetacular “Falando com os mortos”. É uma lição de como ter alta erudição e ser simples, objetiva na exposição das idéias. Que já leste mais dela?
Alfredo: só li mesmo os citados: “Madame Oráculo”, “Falando com os mortos” e “O assassino cego”. Em geral os livros de Atwood aqui no Brasil são meio carinhos e não é sempre que tenho dinheiro sobrando. Os romances, por exemplo, eu comprei em um sebo. Gostaria muito de ler esse “A história da Aia” mas tá caro, hein? (Ou, de repente, sou eu que não estou ganhando o suficiente). Ela tem um livro de contos publicado no Brasil, chamado “Dançarinas”. Era outro que eu gostaria muitíssimo de ler, porque gostaria de saber como Atwood se sai na ficção curta. Vamos ver… de repente eu acho em um sebo. Um grande abraço!
Tem uma outra escritora canadense de língua inglesa que, dizem, também é muito boa: Alice Munro. Mas ainda não li.
Curioso mesmo é taxar de “paranóico” o pós-11 de setembro. Gostaria de ver como você reagiria depois que seu país levasse dois aviões na cabeça…
Eu estou em Salvador na Bahia e gostaria de saber onde adquirir o livro “Falando com os mortos” já procurei em diversas livrarias e não encontrei, vende pela Internet? Agradeço sem mais.
WOW, my fatcher boght a new computer for me today!