Entre as muitas delícias da longa entrevista (em inglês, acesso gratuito) que Zadie Smith fez com Ian McEwan em 2005, publicada pela revista The Believer, minha preferida aparece já no texto introdutório da autora de “Sobre a beleza”. Zadie conta que, ainda universitária e aspirante ao mundo das letras, foi levada por uma amiga enturmada à festa de casamento de McEwan, já então um escritor estabelecido (embora ela confesse que, na época, estava ocupada imitando Martin Amis, também presente à festa).
“Parece”, disse minha amiga com ar de entendida, quando observávamos McEwan rodopiar com sua nova esposa pela pista de dança, “que ele escreve apenas quinze palavras por dia.” Eis uma informação infeliz para se dar a um escritor aspirante. Eu era terrivelmente suscetível ao poder do exemplo. Se me dissessem que Borges corria três milhas toda manhã e depois plantava bananeira numa tina de água antes de se sentar para escrever, eu me sentiria obrigada a tentar isso. O espectro do limite de quinze palavras ficou comigo por um longo tempo. Três anos depois, quando estava escrevendo “Dentes brancos”, lembro-me de pensar que todos os meus problemas se originavam do excesso de palavras que me sentia impelida a escrever todos os dias. Quinze palavras por dia! Por que você não escreve apenas quinze palavras por dia?
Naturalmente, o tal limite de quinze palavras nunca existiu, era uma falácia que a amiga de Zadie tinha inventado ou, crédula, passava adiante. Quinze palavras correspondem de forma aproximada a uma linha e meia. É verdade que existem dias ruins em que o saldo do trabalho de um escritor não chega a tanto, mas limitar antecipadamente e de modo tão severo sua produção diária deixaria aleijado o mais conciso dos prosadores.
O que me agrada na historinha das quinze palavras é seu poder de retratar, com uma ligeira ampliação do grau de absurdo, essa armadilha em que caem multidões de escritores em seu caminho de aprendizado: como os grandes fazem? Na impossibilidade de escrever o que escrevem os autores que admira, o aspirante passa a se interessar por como eles escrevem, na esperança de que reproduzir em casa algum aspecto do método que produziu ou do ambiente que viu nascer obras-primas fará uma obra-prima se materializar em sua mesa. Acho que todo mundo já passou por isso – eu certamente passei. Chama-se pensamento mágico.
A história da literatura está repleta de métodos e idiossincrasias para todos os gostos. Consta que Hemingway descascava laranjas antes de começar a escrever. Faulkner contentava-se em descascar o lacre de uma garrafa de uísque. Sim, há quem trabalhe com limites diários – Saramago não gostava de passar de duas páginas, o que dá cerca de 650 palavras – e quem, como Balzac e Dostoievski, escreva o máximo de palavras na maior velocidade possível, ciente de que os credores não serão sensíveis ao argumento da contenção. Se procurarmos bem, vamos acabar encontrando quem diga que só o sedoso papel de carta do Algonquin, principalmente quando ferido pela pena de um pavão virgem alimentado com grãos orgânicos, é uma tela digna de sua inspiração.
Nada disso quer dizer que escritores não possam ter manias, rituais, métodos, superstições. Pelo contrário, tais coisas são, em certa medida, praticamente inevitáveis. Quer dizer apenas que cada um tem que descobrir por si – sozinho, na mais completa escuridão – quais são as suas. Como todo o resto, aliás.
Um comentário
Como de praxe, mais um artigo delicioso. O trecho sobre a pena de falcão virgem alimentado com grãos orgânicos ferindo o sedoso papel de carta do Algonquin é excelente. Mas o que eu queria comentar é que, finalmente, comecei a ler Zadie Smith, e em parte por perceber que vez por outra você a cita positivamente aqui. Comecei pelo indefectível “Dentes Brancos” e estou gostando muito. Alguns autores buscam uma linguagem pop, contemporânea, que não seja rasa e artificial. Zadie consegue isso com maestria. Agradeço a dica – ainda que indireta.