Meu pai tinha uma coleção Clássicos da Literatura Universal, capa dura marrom com letras douradas, papel âmbar, graças à qual, aos dez anos de idade, passei semanas ou séculos (o tempo é diferente quando se tem dez anos) engalfinhado com a prosa opaca e vagarosa do “Ivanhoé” de Walter Scott, tentando entender palavra por palavra, crente que o que eu não entendia só me fazia melhor.
Da mesma coleção li Flaubert, Tolstoi, Turgueniev, Wilde e Knut Hamsun antes dos quatorze. Quer dizer: muito cedo foi tarde demais. Tudo entremeado com Erico Verissimo, que também reivindicava seu metro e meio de estante nas obras então completas da editora Globo de Porto Alegre, capa dura azul. Os prefácios espirituosos que o pai de Clarissa tinha escrito para todos os volumes, desvelando os bastidores da literatura, deram o empurrãozinho que faltava: tarde demais, sem dúvida nenhuma. Para o bem ou para o mal, eu ia ser escritor e pronto. Meu pai ficou preocupado com a notícia.
Meu pai tinha também uma edição inglesa de “David Copperfield” no fundo da parte de cima do armário de seu quarto, com assinatura na folha de rosto – uma assinatura espalhada e confiante de jovem, diferente do jamegão adulto estilizado que eu admirava intensamente – ao lado de uma data esquecida dos anos 50. No dia em que encontrei esse livro por acaso, eu já devia ter mais de quinze. Lembro que a descoberta me lançou num estado confuso de agitação. Entre os sentimentos malformados que se chocavam dentro de mim, um era certamente o orgulho filial de saber que meu pai, homem pragmático, um dia lera – ou tentara ler – literatura inglesa no original, algo que parecia inalcançável para simples mortais como nós, nascidos no interior de Minas. Mas havia também uma estranheza: por que Dickens não estava na estante com Verissimo e os Clássicos da Literatura Universal? Meu pai sentia vergonha dele? De sua ambição intelectual juvenil? Do pouco que se aprimorara no inglês? Tinha renegado a literatura?
Pensando bem, não me lembrava de meu pai lendo Verissimo, Flaubert, Tolstoi, Wilde. Minha mãe sim, mas não ele. Eu sempre havia imaginado que esses livros já estivessem devidamente devorados quando passei a me entender no mundo, mas agora uma outra ideia se formava: e se meu pai, homem inteligentíssimo, tivesse em nome da vida prática de bancário com quatro filhos para criar abafado sua paixão juvenil por literatura a tal ponto que, embora fizesse pleno sentido assumir as grandes coleções, que afinal eram decorativas, havia que esconder bem escondido aquele “David Copperfield” desesperadamente romântico, solitário, eloquente, denunciador?
E mesmo assim ele não o tinha jogado fora.
Nunca mencionei aquele livro com meu pai. Menciono agora, mas desde 6 de setembro de 2005, cinco anos cheios, ele já não pode responder. Tivemos tempo para conversar sobre muita coisa, e também para que ele fizesse a migração, creio que alegremente, da culpa por ter sido tão negligente na exposição da família àqueles artigos perigosos até uma espécie de orgulho do filho que, bem ou mal, tinha mesmo virado escritor, algo que parecia inalcançável para simples mortais como nós, nascidos no interior de Minas. De Dickens, porém, nem uma palavra.
Sempre é cedo quando fica tarde demais.
23 Comentários
O mínimo que vc pode fazer por mim Dr.Sérgio, é vir dar uma olhada no meu site de contos debochados. Na época do todoprosa (antes da veja),
pesquei muitas dicas interessantes, como Pornopopéia entre outros.
http://www.pompa.com.br
Continue com a mesma pegada meu chapa! Sucesso!!!
Gosto muito de passar por aqui e ver essas palavras pulsando em brasa, num Rio nublado e nebuloso, repousando numa melancolia que de tão familiar, conforta.
Lindo texto, Sergio. Grande abraço.
Lindo texto, Sérgio. Eu não sabia que ele tinha escondido no armário uma cópia de David Copperfield em Inglês, mas fiquei quase tão supresa quanto você quando descobri o caderninho onde ele anotava sonetos.
Belo texto, com lembranças que quase podemos tocar de tão fortes.
Belo e emocionante texto, Sérgio. Acho que foi o seu texto que mais me tocou. Não tive uma relação tão boa assim com meu pai: ele era policial militar (em Minas; sou mineiro como você), alcoólatra, assassinou um tenente dentro do quartel, foi expulso, a família dele deu um jeito pra ele voltar na reserva, batia na gente quando éramos crianças, chegou a dar um tiro em mim e no meu irmão mas ainda bem que estava tão bêbado que mirou errado, e acabou anos depois se matando em algum lugar do Norte do país. Enfim: minha infância foi bastante divertida… OK, romanesca, mas não tão divertida. Não guardo ódio nem amor por ele. Ele foi alguém que existiu por 8 anos na minha vida, depois deixou de fazer parte dela, acabou-se, ponto. Por natureza, não sou de lamentar o passado. Mas me admiro quando vejo pessoas que têm/tiveram uma família mais equilibrada, com pai, mãe, irmãos. Vivo essa emoção “de segunda mão”, digamos. Não sei se me adaptaria a uma família com um pai (sei que não), mas acho bonitinho quando vejo uma… 🙂
Puxa, Sérgio, olha a coincidência. Meu pai tinha a mesma coleção, quatro filhos (não os mesmos do seu pai, não se preocupe) e morreu no dia 6 de setembro de 1995. Seu texto me trouxe saudades de coisas que eu já tinha esquecido. Muito obrigada pela carona nas lembranças.
Grande Sérgio! Grande texto! Continuo teu leitor, sempre! Com o perdão do trocadilho infame e os votos mais do que tardios de sorte e sucesso na nova casa, indispensável mesmo é o Todoprosa. Até Curitiba! Abração.
Que belo texto, Sérgio! A densidade emcional é tão grande, que dá vontade de saber mais sobre essa família mineira e esse escritor iniciante. Não importa se é autobiográfico ou não, o texto é bárbaro, tem muita força!
Belo texto, compartilho com os demais aqui que realmente é emocionante. Relações familiares sempre nos tocam de alguma forma, embora como gay eu acredite que não temos família, nos criamos mesmo é nas ruas. Enfim, com o andar da carruagem pode ser que isso mude, mas não creio que seja pra agora e provavelmente nenhum de nós seus leitores chegaremos a ver.
Emoções à parte, e falando de influências, neste aspecto identifico totalmente com você. Meus pais, como “gente de antigamente” são (minha mãe), eram (meu pai) dessas pessoas que estudaram somente até o quarto ano de grupo. Entretanto, a minha casa sempre foi povoada de livros e não me lembro de um único dia em que eles não estivessem envolvidos com alguma leitura. Dos seis irmãos, acho que fui o que mais herdei este gosto.
Bem, voltando a um comentário que fiz em outro post, mas já de muitos dias atrás e talvez por isso não muito em atividade, gostaria de saber sua posição sobre a questão de literatura homoerótica. Este tema tem me levado a muitos debates e reflexões, justamente porque escrevo histórias dessa natureza, algumas até bem fetichistas. Comecei como autor de Internet, fiquei conhecido no meio, e migrei para o chamado mundo real (onde me parece sou pioneiro), com a publicação de dois livros: DOMINAÇÃO e CAMA KING SIZE.
Há espaço para histórias bem contadas, porém recheadas de erotismo explicito, como em um filme pornô?
Bem, se quiser ler os livros, terei o maior prazer em enviar, é só me passar por e-mail um endereço para entrega.
Abraços.
Belíssimo texto. abs,
Belíssimo!
O meu pai era uma espécie de rato da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Aos 15 anos ele já tinha lido toda a obra de Bilac, seu poeta preferido. Quando conheceu minha mae, como eram jovens e naturalmente duros, iam para biblioteca. Mais tarde, já casados e também com quatro filhos, eles já nao iam mais para a Biblioteca. Papai costumava ler para a minha mae e nós, os filhos, ficávamos ao redor ouvindo a história. Assim, passávamos momentos inesquecíveis em companhia de Edgard Allen Poe, Anton Chekhov e mutos outros. Pena, que hoje em dia no Brasil, freqüentar biblioteca é quase uma excentricidade. Fato é que as leituras de meu pai eram bem mais interessantes do que assistir televisao ou apertar campainha na casa do vizinho e sair correndo. Abs.
Bela homenagem ao pai! Foi certamente com muito orgulho que ele colocou os livros do filho na estante ao lado dos clássicos. Mas penso que o Dickens escondido (ou melhor, guardado em local menos acessível) seja obra da mãe. Afinal, na tradicional divisão dos papéis naquela família, era ela que se encarregava da arrumação. O pai, se tivesse ousado uma profissão liberal, não há dúvida de que teria sido engenheiro, ou arquiteto, pois, no que diz respeito à casa, a ele cabia construí-la (incluindo parte da mobília) e era ela, a mãe, que se encarregava de mantê-la sempre bela, arrumada e limpa. Se me lembro bem, aquele David Copperfield era uma edição barata, de bolso, talvez mesmo sem costura. Como objeto-livro, destoava muito daquelas imponentes coleções de capa dura.
Como filho mais velho, coube a vc as primeiras traquinagens, começando por bagunçar a estante da casa, fazendo a mãe desistir daquele preciosismo decorativo. Quando eu alcancei as primeiras prateleiras, já lá estava o David Copperfield (que eu pensava ser o mesmo mágico que via na televisão), ao lado de outras tantas brochuras de Maurice Druon e José Mauro de Vasconcellos, Georges Simenon e Rubem Fonseca, Ernest Hemingway e Graciliano Ramos, Virgíniia Woolf e Clarice Lispector, Machado de Assis e Fernando Pessoa, Fernando Sabino, Gabriel Garcia Marquez, Julio Cortázar, entre tantos outros. Desculpe se embaralho as referências, mas o fato é que não saberia dizer como todos eles foram parar ali, quais foram levados pelo pai, quais eram da mãe, quais dos irmãos mais velhos.
Mas nunca vou me esquecer dos seus protestos quando me presenteram com Eleanor H. Porter. Acredito mesmo que, se pudesse, teria armado uma fogueira para queimá-lo ainda virgem.
Belo e comovente texto, Sérgio! Grande abraço!
Belo texto! O que nos chama mais a atenção é o pleno domínio da emoção; o que, pelo contrário, não isenta sua prosa da carga emotiva. Parabéns, você sabe tudo de bola!!!
Texto belo, profundo, suave. Também lembrei-me do meu pai, homem sofrido que encontrou em si mesmo o maior inimigo que poderia ter.
Muito emocionante o artigo, Sérgio, depois de 5 anos da partida de pessoa tão querida, como o nosso pai. Parece que até hoje a ficha não caiu direito, talvez mesmo pela maneira contida com que sempre nos relacionamos, mineiros, de poucas trocas. Escrever, como você faz, é uma forma de desafiar o limiar do tempo.
Saulinho, Simone e Aline, meus queridos irmãos, obrigado por suas palavras. É muito bom vocês aqui.
Sintam-se nomeados em meus agradecimentos todos os amigos que aqui se manifestaram.
Sem querer quebrar o genuíno clima de ternura, o que mais me chama a atenção é um quarteto em que todos são realmente alfabetizados (talvez seja a única prole brasileira assim, e estou falando sério). Graças ao Saulão e esposa!
Faz algum tempo, dentre tudo o que li e vi, que não me deparava com algo tão delicado, profundo e bem escrito. Meus parabéns!
Uma das homenagens mais singelas desde o quase-romance do Cony. Também tenho lembranças empoeiradas entre estantes familiares, só que do meu avô, que venerava os russos como ninguém. Abraço sincero.
Oi Sérgio!Não conseguia comentar aqui.Dava tudo errado. Esqueci de minha senha de Facebook e achei que foi por isso.Mas agora consegui. Seu texto me deu nó na garganta. Vim dizer.
Um abraço,
Rosângela
Amei isto: “Sempre é cedo quando fica tarde demais.” Isto quer dizer que há sempre uma possibilidade, né? Né, não? Puxa! Adorei isto.
Lá em casa tinha essas coleções.
Assim como uma coleção de Jorge Amado de capa avermelhada.
Além de vários outros livros.
Comecei a ler realmente com uns 15 anos, e devorei tudo até uns 17, quando então encontrei uma locadora de livros no Bairro onde morava.