O francês Michel Houellebecq, nascido em 1956, está completando meio século de vida, mas continua à vontade no papel de enfant terrible que o transformou, entre um livro escandaloso e outro, no romancista francês contemporâneo mais lido e comentado do mundo – papel, aliás, que andava vago há tempos no país. Admiro Houellebecq desde que li “Partículas elementares” (Sulina, 1999), mas devo acrescentar – embora isso seja tão pouco surpreendente que talvez cumpra direitinho o que o autor planejou desde o início – que se trata de uma admiração cada vez mais contrafeita, cercada de reservas que vão crescendo à medida que sua obra avança: depois do sucesso de “Partículas elementares”, a própria Sulina lançou seu livro de estréia, “Extensão do domínio da luta”. A Record tomou a frente em 2002, com o rumoroso “Plataforma”.
Não está errado dizer que Houellebecq escreve romances de idéias, desde que essas idéias sejam entendidas como negativos dos clichês da esquerda – portanto, de certa forma, ainda clichês. Entre outros alvos mais casuais, “Partículas elementares” compra briga com os hippies e a contracultura da virada dos anos 60/70; “Extensão do domínio da luta”, com a liberação sexual; “Plataforma”, com os muçulmanos. O novo Houellebecq, “A possibilidade de uma ilha” (Record, tradução de André Telles, 480 páginas, R$ 49,90), faz um coquetel de todos esses “inimigos” e aprofunda mais um pouco um traço marcante dos romances anteriores: o clima de fim de linha, o mal-estar profundo com a humanidade, a descrença em qualquer possibilidade de futuro decente. O futuro indecente, aqui, começa quando o protagonista – Daniel, humorista famoso e politicamente incorreto, mais um alter ego de Houellebecq – se junta a uma seita que promete vida eterna a seus fiéis por meio da clonagem. Dá certo: Daniel se perpetua e chega em boa forma à sua versão Daniel25, dois milênios depois. A humanidade como a conhecemos não tem a mesma sorte.
Se esse resumo faz Michel Houellebecq soar ranzinza, reacionário, intratável, é porque ele é tudo isso mesmo. É também um escritor engraçadíssimo, ferozmente perspicaz, e com uma qualidade cada vez mais rara: a ambição insana de dar uma resposta artística ao estado do mundo hoje – o mundo inteiro, e não um pequeno pedaço ou aspecto dele. Hoje. Agora. Houellebecq não bate muito bem. Vale a pena lê-lo.
O espetáculo “PREFERIMOS AS SURUBAS COM PALESTINAS” foi provavelmente o auge da minha carreira – midiaticamente falando. Deixei brevemente os segundos cadernos dos jornais para entrar nas seções “Justiça-Sociedade”. Houve queixas de associações muçulmanas, ameaças de atentado a bomba, enfim, um pouco de ação. Estava assumindo um risco, é verdade, mas um risco calculado: os fundamentalistas islâmicos, surgidos no início dos anos 2000, tinham conhecido mais ou menos o mesmo destino dos punks. A princípio haviam sido desbancados pela chegada de muçulmanos educados, gentis, piedosos, saídos de esferas tabligh; algo equivalente à new wave, para prolongar o paralelo; as garotas nessa época ainda usavam véu, mas bonito, decorado, com babados e transparências, como um acessório erótico de fato. E depois, claro, em seguida, o fenômeno extinguira-se lentamente: as mesquitas construídas a grandes custos viram-se desertas, e as sarracenas novamente oferecidas no mercado sexual, como todo mundo. Tudo estava anunciado, levando-se em conta a sociedade em que se vivia, não podia ser de outra forma; isso não impediu que, no espaço de uma ou duas estações, eu me visse na pele de um herói da liberdade de expressão. Com relação à liberdade, a título pessoal eu era na verdade contra; é divertido constatar que são sempre os adversários da liberdade que se vêem, uma hora ou outra, mais necessitados dela.
Isabelle me assessorava, aconselhando-me com delicadeza.
– O que você precisa – disse de saída – é ter a ralé do seu lado. Com a ralé do seu lado, você será inatacável.
– Eles estão do meu lado – protestei –; eles vão ao meu espetáculo.
– Isso não basta; você precisa adicionar uma camada. O que eles respeitam acima de tudo é o capital. Você tem capital, mas não exibe o bastante. Precisa esbanjar um pouco mais.
A conselho dela, comprei então um Bentley Continental GT, cupê “magnífico e de estirpe”, que, segundo o Auto-Journal, “simbolizava o retorno da Bentley à sua vocação original: propor carros esportivos de alto gabarito”. Um mês depois, eu era capa da Radikal Hip-Hop – enfim, em primeiro plano, meu carro. A maior parte dos rappers comprava Ferraris, alguns Porsches originais; mas um Bentley os desbundava completamente. Os carinhas não tinham nenhuma cultura, sequer em matéria de automóvel. Por exemplo, Keith Richards, como todo músico sério, tinha um Bentley. Eu poderia ter arrematado um Aston Martin, mas era mais caro, e afinal o Bentley era melhor, o capô mais comprido, podia acomodar três putas sem problema. Por 160 mil euros, no fundo, era quase um escândalo; em todo caso, em termos de credibilidade canalha, acho que tive um bom retorno com o investimento.
Esse espetáculo marcou também o início da minha breve – mas lucrativa – carreira cinematográfica. No meio do show, eu inserira um curta-metragem; meu primeiro projeto, intitulado “DESPEJEMOS MINISSAIAS SOBRE A PALESTINA!”, já tivera o tom de farsa islamófoba ligeira que mais tarde tanto contribuiria para minha fama; mas, a conselho de Isabelle, tive a idéia de introduzir uma pontinha de anti-semitismo, destinada a contrabalançar o caráter globalmente antiárabe do espetáculo; era o caminho da sabedoria. Optei então por um filme pornô, enfim, uma paródia de filme pornô — gênero, é verdade, fácil de parodiar — intitulada “CHUPE MINHA FAIXA DE GAZA (meu colono judeu gorducho)”. As atrizes eram sarracenas autênticas, com garantia do bairro muçulmano – piranhas, mas de véu, o gênero; filmamos as externas no Mar de Areia, em Ermenonville. Era cômico – um pouquinho picante, claro. As pessoas riram; a maioria das pessoas. Durante uma entrevista cruzada simultânea ao lado de Jamel Debbouze, ele me qualificou de “cara superlegal”; enfim, a coisa não poderia ter saído melhor. A bem da verdade, Jamel me abordou no camarim antes do programa: “Posso te iluminar, cara. Temos o mesmo público.” Fogiel, que organizara o encontro, logo se deu conta da nossa cumplicidade e começou a se cagar de medo; convém dizer que há muito tempo eu tinha vontade de foder aquele babaca. Mas me segurei, me comportei, superlegal mesmo.
A produção do espetáculo exigira que eu cortasse uma parte do curta-metragem – uma parte, com efeito, não muito engraçada fora filmada num prédio em vias de demolição em Franconville, mas supostamente ambientada em Jerusalém Oriental. Tratava-se de um diálogo entre um terrorista do Hamas e um turista alemão que ora assumia a forma de uma interrogação pascaliana sobre o fundamento da identidade humana, ora de uma meditação econômica – um pouco à la Schumpeter. O terrorista palestino começava por asseverar que, no plano metafísico, o valor do refém era nulo – uma vez que se tratava de um infiel; porém, não era negativo – como teria sido o caso, por exemplo, de um judeu; sua destruição não era portanto desejável, mas simplesmente indiferente. No plano econômico, em contrapartida, o valor do refém era considerável – uma vez que pertencia a uma nação rica e conhecida por se mostrar solidária com os residentes estrangeiros. Postos esses preâmbulos, o terrorista palestino entregava-se a uma série de experimentos. Em primeiro lugar, arrancava um dos dentes do refém – a sangue-frio – antes de constatar que seu valor de negociação permanecia inalterado. Em seguida procedia à mesma operação sobre uma unha – dessa vez, com a ajuda de pinças. Um segundo terrorista intervinha, uma breve discussão ocorria entre os dois palestinos sobre bases mais ou menos darwinianas. Para encerrar, arrancavam os testículos do refém, sem se esquecerem de suturar cuidadosamente o ferimento a fim de evitar uma morte prematura. De comum acordo, concluíam que o valor biológico do refém era o único a sair alterado da operação; seu valor metafísico permanecia nulo e seu valor de negociação, bastante elevado. Em suma, aquilo tornava-se cada vez mais pascaliano – e, visualmente, cada vez mais insustentável; fiquei, por sinal, surpreso ao constatar a que ponto as trucagens utilizadas nos filmes de gore eram pouco onerosas.
13 Comentários
Partículas Elementares é um dos melhores romances que eu já li. Plataforma, no entanto, me pareceu meio “sobras requentadas”, sabe?
MH é um cara lúcido, mas Mais lúcido ainda é o alemão Thomas bernard. Leitura pré-suicídio!
Oi, Sérgio, fala o tradutor. A propósito do caráter extra-literário controvertido do romance: independentemente das posições do autor, achei que a técnica de narrar na primeira pessoa, ou seja, com o anti-herói sempre detendo a última palavra, é um dos fatores da nossa irritação e o que nos leva a colar mais ainda o protagonista no autor. Na maioria dos romances, por exemplo, de Dostoiévski (que sempre podemos também considerar “de tese”), há sempre um narrador que pondera as diversas posturas dos diferentes personagens. De toda forma, realmente, não há o que ponderar em A possibilidade de uma ilha, é tudo desilusão.
Abração, André
Oi, Sérgio, outra analogia extemporânea que me ocorreu: lembrei da Peste, do Camus, romance igualmente “filosófico”, com a ressalva de que o doutor Rieux acredita na cura e a procura (sorry); Daniel1 estaria mais o padre Paneloux, um corvo de batina, diria o Nelson. Outro abraço, André
Faz muito sentido, André, mas o que você observa não tem nada de extraliterário. E acho que vai além do lance técnico da primeira pessoa: é uma primeira pessoa convicta demais, com todos os seus ódios já cristalizados e organizados nos armários. Houellebecq não encena um debate de verdade, nem na cabeça do narrador nem no mundo. Não há antítese, o tom se aproxima mais da pregação, concorda? Tem brilho, mas acaba perdendo força. Grande abraço.
PS: Acho que é a primeira vez que o tradutor de um livro citado na coluna aparece aqui. Volte sempre.
Interessante o “Où est le bec” (como alguns franceses costumam chamá-lo – a tradução é “Onde está o bico?” -, já que esta frase e o sobrenome dele são homófonos) dizer que o fundamentalismo islâmico é um fenômeno passageiro, que finalmente completará seu ciclo e decairá, como algo natural, como uma planta, por exemplo. Porque é mais ou menos o que vemos acontecer com o Cristianismo, não? Houellebecq parece querer dizer: “Relaxem, não façam tanto drama a respeito, aguentem firme que já já vai acabar”. Acho que se tem de ter uma grande dose de audácia ou mistificação para dizer isso abertamente (em todo caso, concordo com ele).
Perfeito, Sérgio, por isso lembrei o padre da Peste, voltarei. André
ainda o lance da primeira pessoa: é que na verdade só há uma pessoa no livro.
Gostei do trecho. Quando der, vou ir atrás…
Gente!
Será q ele era um observador secreto na tal mansão de Brasília, onde rolava a República de Ribeirão Preto?
Olhem bem, qualquer semelhança não é mera coincidência…ou então o cara é bidu 🙂
Ah, que delícia esse suco de limão, deu água na boca
Oi, Sérgio, divido com os interessados “errata” após leitura do livro publicado (já enviada para a editora):
p.35 (2º parág.): “Refleti por um bom minuto, convinha fazer-lhe [fazê-la] entender …”
p.111: avento dos Futuros [advento dos Futuros]
p.114: nada tinha de homófobo [homofóbico, melhor]
p.142: Nossa primeira caça … nossa última caça [caçada, claro]
p. 155: Assim mesmo era curioso, ruminei, que a aliança entre o mal e o riso tenha sido … [tivesse sido]
p.268: Deviam manter, suponho, intensas relações por internet [pela internet]
p.270: as quais eu reaproveita em seguida [reaproveitava]
p.325: “distinguiam-se perfeitamente as aréoloas dos seios” [auréolas]
p.363: aficionados [por favor, aficcionados]
p.375: parei progres sivamente [empastelada]
p.387: “O clima mudava velozmente, o calor não ia tardar a se instalar no sul da Espanha; meninas desnudas começavam a se bronzear, principalmente nos fins de semana, na praia próxima à mansão, e comecei a sentir, fraco e flácido [sequer] um desejo de verdade … , mas a recordação … [sem o “sequer”, que estava na tradução, a frase perde o sentido]
O cinismo de Houellebecq é extremo a ponto de se transformar em paradoxal ingenuidade: suas observações sobre a decadência do homem e da sociedade são tão simplistas quanto as que poderia fazer um hipotético otimista incorrigível. Além disso, no esforço de fazer passar ao leitor suas idéias Houellebecq despreza a construção de uma história envolvente ou de personagens complexos. Ele poderia aprender algumas coisas com Jonathan Coe, que consegue transmitir uma opinião clara (e nada lisonjeira) sobre a sociedade inglesa sem sacrificar o entretenimento do leitor.
O pior é que Houellebecq faz escola: “99 francs” e “Windows on the World”, de Frédéric Beigbeder, ou “Como me tornei estúpido”, de Martin Page, são outros romances franceses contemporâneos em que as idéias massacram a história. Um bom antídoto é Emmanuel Carrère e seus excelentes “O adversário”, “Férias na neve” e “O bigode”.
Ah, sim: Houellebecq aparentemente tem um blog, ainda mais chato do que seus romances: http://web.mac.com/michelhouellebecq/iWeb/Site/Blog/Blog.html
Palhaço eu, nem no circo não tô ed gar …
vem me ve paga bilhete no cine americano
aqui é uma festa todo dia, levanto par dize
que podem ir toda hora eta poder bao
Ir pra trincheira pra que se tenho sofá …
macho macho macho sem m é acho eu acho macho eu ahahahahaha adorofemea