A palavra milícia ganhou projeção nacional depois que membros de um desses grupos torturaram jornalistas no Rio de Janeiro. No entanto, séculos antes de adquirir o sentido hoje dominante no Brasil – grupo de policiais dedicados à atividade criminosa de vender segurança em áreas abandonadas pelo Estado –, a milícia brotou da mesma fonte belicosa, mas respeitável, que daria em termos como militar e militante. A família saiu da raiz latina miles/militis, isto é, soldado, por meio de militia (serviço militar, campanha).
O primeiro registro de uma acepção que diferenciava milícia e Exército apareceu no francês do século 17: milice ganhou o sentido suplementar de “tropa de cidadãos recrutada para reforçar as forças regulares em caso de necessidade”. A palavra ainda não estava associada ao crime: as milícias se punham a serviço dos militares de carreira.
Esse sentido chegou poucos anos depois ao inglês militia. Em português, no início do século 18, o pioneiro “Vocabulário Português e Latino”, de Raphael Bluteau, retratava uma abertura semântica semelhante: “Gente miliciana é a gente bisonha, e soldados de ordenança, em que entram sapateiros, alfaiates e outros oficiais mecânicos”. (Bisonho, no caso, é recruta, soldado inexperiente.)
A reputação da palavra ficou muito comprometida em 1922, quando o futuro ditador italiano Benito Mussolini fundou suas “milícias fascistas” – bandos de arruaceiros a serviço de uma política de extrema direita. Apesar disso, convém lembrar que o vocábulo continua servindo para designar tropas não regulares engajadas em causas nobres – a defesa de um país contra invasores estrangeiros, por exemplo. O espectro semântico de milícia não traz em si um julgamento moral. Mas é inegável que os milicianos das favelas cariocas estão contribuindo para reforçar seu lado negativo.
Publicado na “Revista da Semana”.
3 Comentários
Que coincidência… Ontem li a palavra num livro de Garcia Márquez, e pensei mesmo sobre a origem da palavra… Aparecia lá um tal capitão, ou seja lá qual patente, de milícias. Lembrei de nosso “Sargento de Milícias”, leitura obrigatória, e portanto, burlada na época da escola. Agora, será que dá pra usar “paramilitar” como um possível sonônimo ?
Caro Pedro, na acepção que está em questão aqui, “organização paramilitar” é um sinônimo de milícia, sim. Um abraço.
Deixando o português de lado, como carioca vivendo no exílio é tão triste ver o rumo das coisas… e de pensar que as eleições vêm aí.