Millôr Fernandes é um escritor de domínio linguístico invejável e ouvido perfeito. Em crônicas, frases soltas, poemas curtos, pastiches, peças de teatro originais e memoráveis traduções, deixa um legado textual variado que expressa com grande coerência, em meio à diversidade das formas, uma visão de mundo que se poderia chamar de, hmm, milloriana.
O esquema é provisório, claro, traçado ainda sob o impacto de sua morte, mas acredito ser possível identificar quatro linhas de força principais em seus escritos: pessimismo, anarquismo, humanismo e uma quarta qualidade, mais difícil de definir, que ele mesmo chamou de audácia, mas que também se poderia chamar de irreverência, caso a palavra não estivesse tão gasta, ou mesmo de molecagem.
Volto à versão bruta da entrevista que fiz com Millôr para a revista “Bravo!”, no dia 14 de novembro de 2008 (versão editada aqui), e descubro que os quatro pontos são cobertos de alguma forma em nossa conversa, embora eu ainda não os tivesse discriminado na época.
O pessimismo de Millôr é uma das fontes evidentes de seu humor. Levado ao superlativo, dá em frases como estas: “Nunca ninguém perdeu dinheiro apostando na desonestidade”; “Como são admiráveis as pessoas que não conhecemos muito bem” e “Não há ninguém tão miserável que não encontre um outro mais miserável para explorar”. Uma pista: em nossa conversa, ele disse ter lido “a vida inteira” o escritor irlandês George Bernard Shaw – que, aliás, envelheceu pior que ele. Voltaire é outro caminho. “Ele tem uma frase sensacional: ‘Quando o primeiro espertalhão encontrou o primeiro imbecil, nasceu o primeiro deus’.”
Do anarquismo, Millôr falou com respeito. Embora considerasse “impossível” sua versão política, pois “o primeiro espertalhão vai sempre tomar o poder”, era um adepto tão fervoroso da não ingerência do Estado na vida do cidadão que chegou a conduzir, em sua coluna no “Jornal do Brasil”, uma sistemática campanha contra a obrigatoriedade do cinto de segurança. “Tenho horror do governo dirigir todos os meus atos”, explicou. “Essa lei de tolerância zero para o álcool no trânsito, por exemplo: tolerância zero é intolerância cem.” Diante dessa questão de princípio, estatísticas pró-vida tombavam como mariposas molhadas: Millôr não veio para explicar, mas para confundir.
O humanismo que ele declarou ser seu estado “natural” – e também algo que merece ser cultivado por todos, em sua opinião – aparece, assim, sombreado por muitas camadas de ceticismo. Mas aparece. Em que consiste? Em nunca esquecer que “o ser humano é o principal”, ele explica. “Você não eleva a voz para uma pessoa inferior.”
Resta a quarta qualidade: audácia, molecagem, irreverência, coragem para se transformar, pela pura força do autodidatismo, de trabalhador adolescente órfão numa revista (“O Cruzeiro”) em seu maior astro. “Autodidata é um louvor”, ele me disse quando toquei nesse assunto. “O que eu sou é audacioso, e tenho um instinto, uma sensibilidade. E não tenho medo. Eu quero que o Shakespeare se dane, para não dizer coisa pior. Uma vez eu encontrei o Nelson Rodrigues na cidade e ele disse: ‘Ô Millôr, é verdade que tu melhora o Molière?’ Eu disse: ‘Nelson, olha aqui, eu sou mais velho que o Molière. Eu já vivi duzentos anos a mais que o Molière. Então eu pego a peça dele e traduzo com absoluta fidelidade, ninguém é mais fiel do que eu. Agora, deixou uma bola na porta do gol, eu chuto. Melhoro mesmo, não tem dúvida nenhuma.”
7 Comentários
Aprendi a achar graça no Millôr antes mesmo de me alfabetizar. O Cruzeiro era revista frequente em minha casa. Lida pelo meu pai, que nos passava para que víssemos as figuras. Eu corria a procura do PIF-PAF. Não lia, mas me divertia com aqueles desenhos de figuras humanas um tanto esquisitas. Não tinha percepção do porquê, mas sabia que devia haver uma razão para aquilo. Era o Millor que já começava a fazer arte no meu cérebro. Jamais passei sem ele. Sempre que possível, acessava seus escritos, adquiria suas obras e aprendia mais um pouco. O grande mestre do humorismo crítico, extremamente politizado nos deixa órfãos. Mesmo que ele tenha vivido sem acreditar em Deus, o Todo Poderoso acreditou nele e lhe deu o dom da arte. Como não acredito num Deus vingativo, tenho certeza de que agora eles estão no maior papo. – Eu não lhe disse que existia? Agora vai ter de me aturar. E ecoou no céu uma risada divina.
Perdeu Veja, perdeu…
Millor declarou uma vez, que se lhe fizesse uma autópsia encontrariam o Rio em seu coração. Que “O Millor” possa para sempre viver em nosso coração que ama-o tanto. Saudades, dos seus queridos eleitores!
Olá sergio! Acabei de descobrir seu blog e adorei!
Ganhei a visita cruel do tempo hoje mas depois de ler sua resenha, decidi troca-lo pela versao em ingles.
Uma pergunta: vc leu room, da emma donoghue? Li ano passado e gostei muito, queria saber sua opiniao.
“Millôr melhora Moliére”. Huummm …
Mentes brilhantes como a de Millôr são como cavalos selvagens, não aceitam peias.Sem polêmica: Millôr não só melhora Molière,é melhor!
É o Molière millorado!