O português Mário de Carvalho nasceu em 1944, dois anos depois de António Lobo Antunes, e talvez seja correto dizer que ficou meio ofuscado pelo estilo agressivo e flamejante de seu companheiro de geração. Os dois são escritores da linha de frente da literatura portuguesa hoje, mas Carvalho é mais clássico, de prosa mais contida. O livro que costuma ser considerado sua obra-prima, porém, “Um deus passeando pela brisa da tarde” (1994), tem uma legião de fãs ululantes, daqueles que não se incomodariam de se mudar para dentro da obra. No caso, para a fictícia cidade de Tarcisis, na Lusitânia do século 2, na qual o narrador Lúcio Valério Quíncio, magistrado romano, lida com duas ameaças ao mundo como ele o conhece. Uma é externa: a invasão dos mouros. A outra fermenta no próprio coração do povo: o crescimento de uma seita cujos adeptos têm por símbolo um peixe – o Cristianismo. Após uma edição brasileira pouco divulgada da Contraponto, “Um deus…” está sendo relançado esta semana pela Companhia das Letras (320 páginas, R$ 45,00).
Poucos vestígios da razia são hoje aparentes. É difícil acreditar que estas casas foram reconstruídas, após terem sido em grande extensão arrasadas. Quando esta geração morrer não ficará memória das alterações que em dias de desgraça ensanguentaram estas paragens. Restarão talvez anotações em livros que ninguém lerá, até serem, eles próprios, destruídos, pela crueza do tempo e desatenção dos homens, na melhor das hipóteses. Gozemos agora a paz, Mara e eu, e oxalá não se repitam até ao fim das nossas vidas as depredações que tivemos a desdita de presenciar. Ainda hoje olho com desconfiança quem venha do lado do Oceano. Mas será das praias que acorrem todos os perigos?
Outro dia fiquei estarrecido com o que vi. Era uma manhã agradável e fresca e, contra o meu costume, dei comigo a afastar-me e a deambular pela margem do rio. Debruçado sobre uma sebe, um escravozito apanhava amoras para uma sacola. Nem todas iriam parar à minha mesa, decerto. Habitualmente fecho os olhos a estas pequenas transgressões. As silvas dá-as a natureza, não exigem despesas nem cuidados. Procurei apenas manter-me à distância para que a criança não me visse e não ficasse inutilmente embaraçada. Em dado momento o garoto parou, sentou-se, encheu a boca de amoras, puxou de uma cana e começou a desenhar na areia: uma linha oblonga, outra linha oblonga com a mesma origem e que se afastava e curvava para seccionar a primeira. Uma terceira linha a unir o remate das outras duas. Um ponto: o olho do peixe.
“Quem te ensinou a desenhar isso?” O rapaz sobressaltou-se e olhou-me aterrorizado, com a boca entreaberta, arroxeada do suco das amoras. Nunca tinha visto o seu senhor tão ao perto. Eu devia parecer-lhe terrível, ameaçador, como Júpiter Trovante levantando-se de entre as nuvens. Ajoelhou-se e, com uma mão, estendeu-me instintivamente um punhado de frutos, enquanto com a outra mão protegia a cabeça: “Perdão, senhor!” Competia-lhe sentir-se em falta e não sabia bem de quê. “Responde: Quem te ensinou esse desenho?” Que tinha sido um cardador que passara por ali. “Dos meus?” Que não, meu senhor, que era homem forasteiro que ia de longada, com destino certo. E o gaiato tremia, continha o choro com esforço. A boca, tinta de amoras, dava-lhe um ar lastimoso, de mimo trágico. “Vai-te!” Desapareceu, correndo, por entre as urzes, deixando um rasto de bagas esbarrondadas pelo chão.
Pisoteei meticulosamente o desenho com as minhas botinas cardadas, até restar apenas uma lavra de areia remexida. Acto inútil. Não se apagam as realidades destruindo-lhes os símbolos. Talvez muitas milhas além, no caminho do cardador outros desenhos aparecessem e outras memórias fossem reavivadas. Estava extinta a congregação do peixe? Eu procurava convencer-me de que sim. Que sabia eu?
10 Comentários
Na minha opinião é o livro mais fraco de Mario de Carvalho. Não convence. Em alguns parágrafos se arrasta em um melodrama que lembram novelas da Globo. Foi uma decepção
Entre os que li – e adorei – , prefiro:
Contos da sétima esfera
Os alferes
A inaudita guerra da avenida gago coutinho
abrs,
Sérgio, é ele que vem pra FLIP?
Sérgio, faltou o , ficou todo em itálico o blog hehehe Abraços!
Parabéns, Sérgio, por dar espaço àquele que é um dos maiores prosadores da língua nesta época. O texto citado faz pensar, de longe, em “Humus” e Raul Brandão – companhia de que deve orgulhar-se.
É fácil achar a edição da Contraponto? Essa nova me parece um tanto salgada…
Crônica sobre Ronaldo Fenômeno hoje no http://www.cronicascariocas.com.br
…mouros no século II ? está certo, isso?
Writing Ghosts, é realmente um pouco cedo se pensarmos na grande invasão moura, que só ocorreria uns poucos séculos depois. Mas Mario de Carvalho não está tratando dessa grande invasão e sim de uma escaramuça local. De qualquer maneira, avisa de antemão que o livro não é um romance histórico. Está mais para uma fantasia histórica.
Eu estou entre os fãs do livro — gosto muito.
Achei bem fraquinho.