O mineiro Murilo Rubião (1916-1991) é uma espécie de Dorival Caymmi da literatura: em cinqüenta anos de atividade literária, escreveu uma média de um conto por ano e, perfeccionista, nunca parou de reescrevê-los e submetê-los a uma feroz autocrítica que, no fim das contas, o levaria a considerar apenas 33 aptos a figurar em livro (pena que esse rigor não tenha mais seguidores entre nós). Rubião foi “descoberto” pelo grande público tardiamente, nos anos 70, com o best seller “O pirotécnico Zacarias”. Foi nessa época que o li pela primeira vez. Era adolescente e nunca mais esqueci a forte impressão causada por aquele estilo que, embora fantástico, nada tinha a ver com o realismo mágico latino-americano, ao qual era na verdade bem anterior – o autor já estava inteiro em sua primeira coletânea, “O ex-mágico”, de 1947. A comparação feita habitualmente pela crítica é com Kafka, mas também isso explica pouco. A verdade é que Murilo Rubião não se parece com nada. Só lendo o homem para saber o que significa lê-lo, e por isso é tão bem-vinda a volta ao mercado daqueles 33 contos aprovados por ele, relançados pela Companhia das Letras. Esta semana chegam às livrarias “O pirotécnico Zacarias” (120 páginas, R$ 29, posfácio de Jorge Schwartz) e “A casa do girassol vermelho” (104 páginas, R$ 29, posfácio de Sérgio Alcides), ambos prefaciados por Humberto Werneck. O terceiro volume, “O homem do boné cinzento”, está prometido para abril do ano que vem.
O trecho abaixo é o início do conto que dá título a “A casa do girassol vermelho”. Se alguém conhecer um fragmento mais perfeito de Jardim do Éden em nossas letras, não deixe de me avisar. Isso é só o começo da história, convém esclarecer: a ficção de Murilo Rubião nada tem de ingênua, muito menos de feliz. Melhor aproveitar o paraíso enquanto ele dura:
O entusiasmo era contagiante. Febril. Uma alegria física inundava as faces que até a véspera permaneciam ressentidas. O que veio antes e depois ficará para mais tarde. Mas o que importa, se naquela manhã a alegria era desbragada!
Xixiu mal olhou para fora, ficou alucinado com a paisagem. Parecia um monstro. Da janela mesmo gritou para o universo, que se compunha de quatro pessoas, além dele e de minha irmã Belsie:
– Nanico, sujeito safado! Tá namorando, não é, seu animal de rabo?!
Nanico tirou rapidamente a mão dos seios de Belinha e respondeu desajeitado:
– Tou.
Apenas Belinha, que estava gostando do jardim e das mãos do companheiro, não se conformou com a intervenção do Xixiu, irmão dela. No entanto, disfarçou a irritação. Ninguém se irritava naquele dia. Com naturalidade, virou-se para mim, que beijava a um canto a suave Marialice, e propôs:
– Vamos trocar, Surubi, você fica comigo e o besta do seu irmão se ajunta com a hipócrita da minha irmã.
Se fosse em outra ocasião a proposta seria recusada e o negócio teria dado em briga. Mas naquela manhã quente, queimada por um sol violento, a Casa do Girassol Vermelho, com os seus imensos jardins, longe da cidade e do mundo, respirava uma alegria desvairada.
A troca foi feita sem comentários, enquanto Xixiu, arrastando Belsie pelas mãos, saía da Casa soltando estilhaços:
– Minhas irmãs não são isso que vocês imaginam, corja de salafrários! Ah, se o velho Simeão fosse vivo!
E, exaltado, gargalhava:
– Pouca-vergonha! Pensam que elas são iguais à sua?!
Momentaneamente os estilhaços me feriram e lhe atingi o rosto com um soco que levava todos os meus noventa quilos de peso.
Caiu rindo no chão. Despudoradamente, Belsie ria também. Rimos todos – Belinha cerrou a minha boca com o seu riso e seus beijos.
Sua irmã, avessa às expansões mais rudes, sugeriu, com uma voz cariciosa, que fôssemos para a represa.
O primeiro a concordar foi Xixiu. Nem esperou pela nossa aquiescência. Colocou sua mulher nas costas e saiu galopando pela estradinha. Seguimos atrás, os braços dados. Habituado à sensualidade de Belinha, Nanico vinha por último, constrangido com o ar etéreo de Marialice.
12 Comentários
Ainda bem que eu comprei minha edição de contos reunidos há dois anos, numa edição da Ática que me custou 30 reais…
A inflação tá ruim mesmo. Hoje em dia pra ter a obra completa dele eu teria de pagar o triplo disso!
eu também tenho a edição dos contos reunidos da Ática. Suponho que estas edições da Cia. das Letras não tenham nenhum conto a mais, não é mesmo? Seja como for, também paguei bem baratinho pela edição. Agora seria impensável tentar comprar estas edições, tão caras.
BCK e Saint-Clair, respeito a opinião de vocês, mas estou pagando para ver — e, quem sabe, pagando para ter essas novas edições do Murilo Rubião. Gente, ninguém no Brasil hoje em dia faz livros mais caprichados que a Companhia das Letras, talvez só a Cosac Naify e olhe lá. Basta ver a capinha que o Sérgio reproduziu na coluna. E tem os posfácios, que devem ser ótimos, pois os caras são uns pesos pesados da crítica. Eu conheço a tal edição da Ática, comprei e li quando estava na faculdade, mas, me desculpem, acho descuidada, além de feiosa, com uma capa que não tem nada a ver, aquele peixe num aquário. Vou primeiro examinar os livros que a Companhia está lançando, e se estiver enganado dou a mão à palmatória.
A Companhia das Letras vende caro, mas faz direito, como disse o Eduardo. Assim como a Cosac. O que dói é ver livros igualmente caros e feitos sem o menor cuidado, mesmo os publicados por editoras grandes, como Ediouro, Record.
Vocês aí falando de livros caros e eu aqui contando os meus trocadilhos!
Quase todas as vezes que me RECORD em COMPANHIA das LETRAS me vejo num sebo!
É verdade que os livros da Cia das Letras são muito bonitos… Eu pagaria um pouco a mais para ter uma edição mais bonita. O que eu não pago é o triplo (porque se cada um custar 30 reais, o custo final vai ser o triplo).
O pior é eles lançarem 3 edições de 100 páginas cada uma ao invés de lançar tudo junto. É só para tirar o máximo de dinheiro do leitor. Alguém aqui pagaria 90 reais por um livro de 300 páginas da Cia das Letras?
(ah, e o peixe da capa da ática tá dentro de uma garrafa, não de um aquário.)
Impressionante. Há anos faço propaganda da OBRA de MUrilo Rubião. Em boa ( embora tardia) hora chegou a vez do “resto” mundo conhecer a sua OBRA.
E lembrar que ele gastou 26 anos para escrever “O convidado”. Paulo Mendes Campos conta, em saborosa crônica, o momento em que o velho e querido amigo Rubião começou a escrever tal conto, ainda em São Paulo, num quarto de hotel, durante o Congresso de 1945.
Aliás, 26 anos para escrevê-lo e aquela frase no final: “O convidado não existe”.
Caros BCK e Saint-Clair, acho que:
1) Murilo Rubião merecia mesmo edições caprichadas,, como provavelmente serão essas da Companhia das Letras;
2) vocês dois merecem ganhar aumento para poderem comprar edições caprichadas de Murilo Rubião.
Li um romance recentíssimo da Cia. das Letras, de um joverm autor gaucho, com o nome de dois revisores indicados na ficha técnica, e havia alguns erros gramaticais imperdoáveis. Por fora, bela viola…
Daniel Brazil, se adivinhei certo, aí vai um link útil:
http://ranchocarne.org/blog/?p=111
“Bati o pé para manter diversas idiossincrasias de estilo, como um uso às vezes esquisito de vírgulas, a convivência de “pra” e “para” no mesmo texto, aversão patológica a pretérito-mais-que-perfeito (mas essa é uma frescura que estou aprendendo a regular, inclusive com a ajuda de revisores) e preferência pelo pronome reto como objeto direto, ao invés de próclise (meu livro está cheio de “olhou ela” ao invés de “olhou-a”, o que causa calafrios em muitos leitores, mas não estou nem aí.) Meus desejos foram todos respeitados pelos editores.”