Duas entrevistas com o escritor britânico V.S. Naipaul publicadas por tradicionais jornalões no mesmo dia, o último sábado, são tão radicalmente opostas que o primeiro efeito do contraste não pode deixar de ser uma perplexidade cômica: qual dos dois retratos é fiel ao prêmio Nobel de Literatura de 2001? Ou seriam ambos falsos? Quando se vai além dessa primeira impressão é que começam a surgir questões interessantes sobre o jornalismo cultural.
No Sabático, suplemento literário do “Estado de S.Paulo”, o enviado especial Andrei Netto encontra-se em Londres com um Naipaul “formal, mas simpático e muito gentil”. No Babelia, suplemento literário do espanhol “El País”, o correspondente Walter Oppenheimer teve sorte diferente na casa de campo do escritor, em Wiltshire: “A entrevista vai mal. Desde o primeiro instante. Não há química. O olhar de Sir Vidia destila cada vez mais impaciência, mais desprezo”.
As entrevistas que eles arrancaram do autor de “A máscara da África” – relato de viagens lançado ao mesmo tempo aqui e na Espanha – são condizentes com esses inícios em chaves opostas. Com Netto, interlocutor abertamente simpático que evita até a sombra de questões espinhosas, Naipaul é paciente, loquaz, quase vulnerável (não disponível online). Com Oppenheimer, que insiste em lhe perguntar sobre cada um dos temas que o transformaram em bicho-papão na imprensa britânica, é intratável a ponto de conceder uma anti-entrevista que se lê penosamente e que, no manual clássico do jornalismo, nem mereceria publicação (em espanhol, aqui).
É evidente que o repórter brasileiro estava mais interessado em – e mais preparado para – conversar com Naipaul sobre seu ofício. O correspondente do “El País”, que confessa de saída entender mais de política que de literatura, parece mergulhado demais no pântano de fofocas em que a imagem do escritor britânico nascido em Trinidad Tobago chafurda nos últimos anos: os maus tratos que alegadamente infligia à sua primeira mulher, Pat, que morreu de câncer em 1996; a briga pública com seu ex-discípulo Paul Theroux; e o desprezo que recentemente declarou devotar a toda a literatura escrita por mulheres. Pode-se concluir que Oppenheimer procurou uma grande figura intelectual com um olhar formatado pelo mais baixo jornalismo de celebridades, e por isso fracassou.
Por outro lado, há indícios de que foi alto demais o preço pago por Netto pela boa vontade de um entrevistado sabidamente irascível. Se os detalhes da vida íntima de Naipaul não vêm ao caso, omitir por completo a polêmica gerada por suas declarações de misoginia literária – públicas e reveladoras de uma visão do mundo e da arte – cheira a submissão. Impressão que se acentua quando o enviado especial diz: “O senhor sabe que encarna boa parte de suas próprias definições sobre talento e completude para uma nova geração de autores, certo?” Naipaul não sabia, mesmo porque a afirmação não se sustenta. Pergunta ao repórter se ele tem certeza disso. “Sem sombra de dúvida”, responde Netto. “Mesmo em países distantes, como o Brasil, com o qual o senhor não tem grande intimidade, sua obra é uma referência contemporânea”. O entrevistado fica maravilhado: “Que palavras encantadoras!”
Afirmar que o jornalismo busca “a verdade” é ingênuo, mas isso não o desobriga de tentar refletir o maior número possível de facetas daquilo que retrata. Nem cordeiro nem lobo mau, o escritor V.S. Naipaul tem sua história de possível – mas, como é quase consensual, declinante – grandeza artística entrelaçada com uma independência de pensamento e uma incorreção política que o tornam difícil de digerir. Nem preto nem branco, o homem é listrado. Ou cinza. Em algum lugar entre São Paulo e Madri deve haver um retrato menos maniqueísta.
8 Comentários
E o “caminho do meio” – talvez o mais difícil, nestes tempos de extremos – seria um retrato do possível (de um jornalismo franco)? Ou se perdeu algo no caminho…?
Afonso, não se perdeu nada no caminho. Um bom retrato de Naipaul, inclusive ouvindo o cara, é perfeitamente possível. Entrevista pingue-pongue é mais difícil, Sir Vidia é osso duro. Reconheça-se que as duas reportagens citadas eram entrevistas e não perfis.
Perfeita a sua análise das duas entrevistas, apontando suas qualidades e limitações. Esse é um dos motivos porque leio sempre seu blog.
Obrigado, José. Apareça sempre.
Não creio que Naipaul esteja em declínio no contexto de relevância literária, Sérgio. Nada há em seus romances nada que confirme alguma obsolescência de estilo ou descompasso com o que os escritores dessa geração estão criando. Lembro que recentemente, quando Bellow ainda era vivo, jornais dividiam a carga de “maior escritor em inglês vivo” entre ambos. Sua prosa é sofisticada, sua visão genuína (mais ainda pelo que tem de decadentismo polêmico contra os países em desenvolvimento), seu poder ficcional puro e de singir ficção com ensaio e viagem. Logo esquecem as besteiras misóginas ditas por Naipaul, assim como fizeram com Céline (num extremo), e o próprio Bellow, em outro. Ainda considero Naipaul o autor de dois romances fundamentais da metade final do século XX: Uma casa para o senhor Biswas e O enigma da chegada.
Charles, respeito essa opinião, e talvez tenha me expressado mal: não quis dizer que o que Naipaul fez de melhor está perdendo valor, e sim que seu trabalho recente não tem chegado nem perto daquilo. Quanto ao perdão da posteridade para as bobagens, concordo. Se bem que no caso de Céline (um exemplo extremo, Naipaul não lhe chega aos pés), me pergunto se esqueceram mesmo. Um abraço.
Há um texto no blog da Cia das letras que trata do não esquecimento dos pecados do homem Céline. Não perdoram_ ou dizem não tê-lo feito_ ao homem, mas o escritor é muito cultuado.
Não sei qual o último livro relevante de Naipaul, antes do mediano Meia Vida.
Céline é superior, mas aí entramos na encruzilhada das comparações: Uma casa para o senhor Biswas me provocou tanto embevecimento quanto Viagem ao fim da noite.
Não entendo porque Naipaul optou por essa versão tardia de intratável. Ele próprio autorizou as passagens mais degradantes de sua biografia. Talvez seja a reação por ter sido tido como queridinho a vida toda por falar do subdesenvolvimento. O primo pobre dos escritores que tinha o mérito duplo de ser oxfordiano e porta-voz do estranho mundo de lá dos salões literários de Londres e Nova York. Falar bem de Naipaul era glamoroso. Talvez seja por isso que ele, num desabafo, disse que nunca foi tratado à altura na Inglaterra. Ás vezes até me solidarizo com essa reação catártica desse grande escritor.
“Personalidade”/”Celebridade” – São categorias inaplicáveis a Naipaul. Não dou a mínima para seus pecados, nem que sejam do tamanho dos de Céline. “Uma casa para o Sr. Biswas” é o livro que me ensinou o lugar de um sujeito inteligente quando nasce num país atrasado e o lixo que é o regionalismo brasileiro, com todas as nossas “estrelas” literárias, devidamente adoradas por gente como Dilma/Sarney. No Brasil o atraso é um fetiche, um objeto de masturbação(às vezes literalmente falando, hehe). Naipul mostra o atraso como é, uma face triste da miséria humana sem justificativas bocós. É o melhor que temos para ler sobre o mundo globalizado.