Algo estranho aconteceu com os narradores não confiáveis em meados do século 20: eles se tornaram um pouco mais confiavelmente não confiáveis, e muito mais vis. Em fins do século 19 eles tendiam a ser pouco dignos de crédito por estarem escondendo alguma coisa sobre si mesmos ou não conseguirem enxergar a verdade, em geral devido a algum tipo de fraqueza psicológica. No entanto, à medida que o modernismo caminhou para o pós-modernismo e todos nos tornamos muito mais cínicos, esperava-se que os narradores em sua maioria fossem complicados. A falta de confiabilidade tornou-se inseparavelmente ligada à maldade – para não falar na duplicidade, no delírio e até na loucura. Naturalmente, o alargamento dos parâmetros também tornou os narradores não confiáveis muito mais divertidos, com o humor compensando com frequência seu lado negro. O desafio era tornar esses traiçoeiros narradores em primeira pessoa ao mesmo tempo intrigantes e divertidos.
O escritor Henry Sutton faz no “Guardian” uma boa reflexão (em inglês) sobre o clássico tema do narrador não confiável, além de apresentar uma também interessante lista pessoal dos dez principais livros da língua inglesa cuja prosa é conduzida por um deles: “Lolita”, “A volta do parafuso”, “O apanhador no campo de centeio”, “Psicopata americano”, “As aventuras de Huckleberry Finn”, “Grana” (de Martin Amis) e outros – nada muito novo.
O narrador não confiável, como se sabe, é aquele que, dos bastidores, o autor deixa mais ou menos claro não gozar de sua confiança, e portanto não merecer também a do leitor. É tipicamente um personagem que, envolvido na história que conta, narra em primeira pessoa (embora a terceira pessoa não onisciente também possa ser usada) uma versão parcial, interessada e às vezes flagrantemente delirante. Já ouvi o argumento de que todo e qualquer narrador é por definição não confiável, uma vez que nenhum discurso dá conta da “realidade”. Isso me parece um sofisma bobo. O fato de eu não acreditar numa única palavra de um livro não torna seu narrador necessariamente não confiável – não no sentido que a teoria da literatura dá ao termo. O recurso se caracteriza pela exploração consciente e quase sempre irônica da distância entre autor e narrador, e pelo o fato de dois ou mais níveis de significação transcorrerem simultaneamente. Em outras palavras, é preciso confiar no autor para desconfiar do narrador.
Na literatura brasileira, o exemplo imbatível do gênero é o Bentinho de “Dom Casmurro”, tão convencido de ter sido traído por Capitu que enganou uma ou duas – talvez mais – gerações de críticos, além de fazer o mesmo até hoje com leitores desavisados. Lendo o decálogo de Sutton, porém, fiquei interessado em ampliar os exemplos para montar um similar nacional. Sugestões, moçada?
28 Comentários
Dois do Ubaldo.
Um genial e outro meia-bomba:
Sargento Getúlio e Diário do Farol
Há vários contos de R. Fonseca com narradores pouco confiáveis. Não me ocorreu nenhum romance ainda. Deve ser o calor, quem sabe?
Mas comento por um motivo paralelo:
A falta de confiabilidade tornou-se inseparavelmente ligada à maldade – para não falar na duplicidade, no delírio e até na loucura.
Não seria uma reação ao politicamente correto?
uhahuaahuhauaua
o mais classico é o Bentinho em Dom Casmurro, apesar da Capitu ter traído ele!
Sérgio, lembrei de pronto do Angústia, do Graciliano Ramos. O tal do Luis da Silva não era de se confiar muito nele, não.
Só não lembro se o livro é narrado em primeiro ou terceira pessoa.
Luís da Silva, concordo.
Boa!
O Nelson de Oliveira, em artigo na Entrelivros n.20, cita alguns exemplos clássicos, ou não tão clássicos assim, da prosa nacional dita “escrotinha”: Dalton Trevisan, Clarice Lispector, André Sant’ Anna, Joca Terron, Marcelino Freire, Glauco Mattoso. Às livrarias, galera!!!!
Tem o Serafim Ponte-Grande do Oswald, não é pós-modernismo. Mas num lance de metalinguagem, ele intervém descaradamente na narrativa o tempo todo.
Olá gente
será que o Paulo Honório e João Miramar não cabem nessa história?
E dos bens novicos, talvez a personagem do romance do Alex Castro, romance já comentado por aqui, tbm não seria um exemplo de narradora pra se desconfiar.
abs
Ps: E vc Sergio, será que, mesmo em terceira pessoa, não é de se desconfiar do narrador das suas Sementes de Flowerville? 😀
Léo, eu não diria isso. Mas do Xerxes de Elza, a garota, com certeza.
Sérgio, na entrevista que você deu para o Maurício, do Leituras, TV Senado, você disse que tinha procurado ser o mais imparcial possível na condução da narrativa, se não estou enganado. E disse, também, se a memória não me escapa, que tinha se preocupado em colocar na boca da personagem, Elza, apenas falas prováveis, o que demonstrava uma preocupação muito ética da sua parte quanto aos fatos históricos. Te pergunto, e o Xerxes onde entra nisso?
Marcelo, o Xerxes não falseia fatos históricos, a não confiabilidade dele é de outra ordem.
OFF TOPIC:
http://www.wook.pt/ficha/viagens-na-minha-terra-com-vampiros/a/id/4299577
Lembrei-me da novela “O bom ladrão”, de Fernando Sabino, uma dupla homenagem a Machado e Eça, em que o narrador não confia em si mesmo e acaba sem saber se a mulher seria, ou não, cleptomaníaca. A epígrafe, de Mário de Andrade, soa como um slogan dos narradores não-confiáveis: “eu sei que tu sabes/ o que eu nem sei se tu sabes”.
quanta besteira!
De imediato, lembro-me do Coronel Ponciano de Azeredo Furtado, de “O Coronel e o Lobisomem” e de Rosa Ambrosio, de “As Horas Nuas”, com destaque para o primeiro.
Conta outra.
A própria forma como a literatura ficcional trata uma história torna todos os narradores não confiáveis. O autor precisa criar e encaminhar uma situação, portanto a origem de tudo é essa necessidade. É a forma ocmo o autor vê a situação. Nesse aspecto nenhum narrador é confiável, por mais ético que seja. O mundo é relativo ao observador. A belesa está nos olhos de quem vê, assim como a feiúra e todos os demais conceitos, éticos ou não. O bem é sujeito ao mal, como opostos numa moeda, porém o que é bom para mim, pode ser o inferno de outro que está ao meu lado.
O mais importante é lembrar que um livro é um sonho, uma viajem presa entre duas capas. Libertá-la está no nosso dom (quase divino) de ver e interpretar, discernir o que nos é exposto… Sinto sempre um grande praser ao ler um romance bem escrito e, principalmente, em escrever: descrever um sonho, contar uma história, iluminar um novo universo…
Ah!!fantástico texto e muito boa observação…quanto a mim pensei a princípio que você estivesse se referindo aos narradores esportivos que infestam as transmissões esportiva país afora seja em transmissões feitas pela emissoras de tv,rádio etc…qualquer observação feita por eles não é de confiança,e nesse pacote pode-se colocar também alguns comentaristas e reporteres de campo…não cito o nome deles e onde trabalham,mas vocês devem imaginar de quais eu estou falando.
Opa. Legal o Léo ter citado meu livro. Olhaí, Sergio, oportunidade perfeita pra você conferir o Mulher de Um Homem Só e ver qual é. 🙂
Na verdade, em relação a questão do narrador não-confiável e o meu livro, eu fico surpreso com duas coisas:
1) é surpreendente que, num país em q quase todo mundo leu ou conhece Dom Casmurro, que tanta gente ainda confie no narrador, ou seja, que muita gente leia o livro acreditando totalmente na transparência do narrador e sem jamais considerar nem por um segundo tentar ler ALÉM disso…
2) por outro lado, tb acho graça no povo que compara o meu livro a Dom Casmurro (obviamente, comparação muito lisonjeira) aparentemente só por causa do narrador não-confiável. Como, pra mim, TODO narrador é não confiável, comparar meu livro a Dom Casmurro só por causa disso é como, sei lá, compará-lo a Capitães de Areia por serem ambos escritos em português! 🙂
Quanto aos outros comentários, eu diria que chamar João Miramar de não-confiável por interferir na narração é meio excessivo. Ele é mais metalinguístico do que confiável. Pra mim, os outros narradores não-confiáveis por definição da literatura brasileira são o Paulo Honório, q o Leo tb citou, e q adoro, e outro q ninguém citou: Rodrigo SM, em A Hora da Estrela.
Sem o Rodrigo SM, A Hora da Estrela seria só mais um romance pseudo-social de um autor classe média com crise de consciência. Mas o golpe de gênio da Clarice é que, ao colocar o Rodrigo SM no meio, ela transforma o livro: ao invés de mais uma narrativa culpada da classe media endeusando um pobre, torna-se um livro JUSTAMENTE sobre um autor homem de classe média tentando, apesar de todos os seus preconceitos, escrever um livro sobre uma mulher pobre e nordestina…
Esse semestre estou dando um curso de Introdução aos Estudos Brasileiros pros meus gringos. Já lemos Quarto de Despejo, da Carolina Maria de Jesus (que deve ser lido também desconfiando, como tudo), estamos lendo Os Sertões (que tem um narrador tb bastante ambivalente e não confiável), vamos ler Dom Casmurro daqui a 2 semanas e A Hora da Estrela no final do semestre. Ou seja, overdose de narradores não confiáveis. Estou MUITO curioso pra saber como vão ler o Machado e a Clarice. 🙂
Enfim, ufa. Eu nunca comento em blogs, e nunca desse tamanho, mas o assunto é fascinante.
Abração,
Alex
Alex, sinto que Rodrigo SM é a própria Clarice.Sei lá…
Nove Noites, do Bernardo Carvalho.
Aliás, quase todos os narradores dele são desconfiáveis.
todo narrador é não confiável…O narrador é um interposto entre o autor e o leitor, portanto, por definição é um “atrapalhador”.
Quem confia num atrapalhador?
Para citar um recente, lembrei do Eulálio Montenegro D’Assumpção, narrador altamente desconfiável de Leite Derramado, do Chico. Abraços!
Roger Ackroyd de “O Assassinato de Roger Ackroyd” e Luke Fitzwalter de “É fácil matar” ambos de Agatha Cristhie.
Eu sempre achei uma grande bobagem essa coisa de que a Capitu talvez não tenha corneado o Bentinho. Tal suposição só faria sentido se, paralelamente à história narrada no livro, houvesse fatos reais, aos quais a versão contada poderia ou não ser fiel. Quando alguém escreve suas memórias, pode ou não estar falando a verdade; quando alguém escreve ficção, ou seja, uma história propositadamente inventada que assim é vendida ao público, esse alguém sempre estará “mentido”.
Especular que talvez Capitu não tenha traído equivale a construir pontes no ar: um empreendimento totalmente cerebral, uma masturbação intelectual. A resposta ao dilema traiu ou não traiu é simples: quem não existe não pode trair! Capitu não existe, ergo não trai.
Aliás, essa idéia de narrador não-confiável pode ser transplantada par qualquer história narrada em primeira pessoa: Brás Cubas não morreu; o seu romance, que ele diz ser póstumo, é na verdade produto do seu “cérebro enfermo”, irremediavelmente dominado pela loucura; ele não teve sequer um caso com a Virgília — como foi por ela preterido e, pior ainda, por causa do paspalho do Lobo Neves, o maluco do Brás Cubas escreveu o livro apenas para macular o nome daquela pobre senhora.
Como se vê, adotando-se a premissa de que o narrador não é confiável, podemos imaginar qualquer versão diferente da narrada e apresentá-la como uma hipótese provável, tendo em vista o pouco crédito do narrador.
Quem sabe o cara que comia a Capitu não era o Escobar, mas José Dias, o principal opositor do casamento dos dois vizinhos? Alguém já pensou nessa hipótese?
O narrador de o Leite Derramado, do Chico.
há os narradores, no plural, pouquíssimo confiáveis, como os que recheiam enquanto agonizo, do faulkner.
O caso mais engraçado que conheço, em língua portuguesa, é o Conde Abranhos, do Eça de Queiroz. Trata-se da vida do conde contada por seu secretário, um puxa-saco pouco dotado de inteligência. Usei muito esse texto em oficinas de redação para mostrar como se pode demolir uma pessoa só usando elogios 🙂