Aproveito a semana do sorteio dos grupos da Copa do Mundo para pagar uma dívida. Nas entrevistas de lançamento de meu romance “O drible” (Companhia das Letras), tenho cavado oportunidades para recomendar a leitura de “O negro no futebol brasileiro”, de Mario Filho (Mauad, 2003, 344 páginas, R$ 64,90). Trata-se de nosso mais importante título sobre o tema e, mais do que isso, um clássico sobre a formação da sociedade brasileira que – ainda que menos declaradamente ambicioso e muito menos conhecido – comunga do espírito de obras como “Raízes do Brasil” e “Casa grande & senzala”.
Não se trata de um romance, mas de uma longa reportagem, com tintas ensaísticas, sobre os anos de formação do grande esporte nacional. Quem ler “O drible” vai entender desde a epígrafe o quanto Mario Filho – que me atrevi a escalar como personagem do romance – tem a ver com meu livro. Mas acredito que ele mereça elogios mais explícitos, menos cifrados, razão pela qual republico abaixo a resenha que escrevi em 2004, quando “O drible” ainda era um projeto vago, sobre a então recente reedição de “O negro…” que até hoje se encontra nas livrarias.
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Algumas mentiras, de tão repetidas, passam por verdades. Uma delas aponta o que seria uma contradição a mais da vida brasileira, entre as muitas de que o país é feito: nosso futebol, com seu incomparável apelo de massa e sua qualidade aclamada em todo o mundo, nunca produziu na literatura uma única obra à altura dessa exuberância. Trata-se de uma quase-verdade. Só é mentira, e mentira clamorosa, porque o jornalista Mario Filho lançou em 1947 – e relançou, com o acréscimo de dois capítulos, em 64 – um livro chamado “O negro no futebol brasileiro”.
Não se trata apenas do “maior clássico sobre o futebol brasileiro”, como costuma ser apresentado. É o único clássico digno desse nome, a mais acabada tradução da mitologia construída por um povo – fundada ou não, sonho ou realidade, uma fonte concreta de auto-afirmação nacional – em torno do abrutalhado e elitista jogo europeu que nossos craques reinventaram com ginga e malandragem. Craques que eram, em sua maioria, negros e mulatos, como lembra Mario, praticamente a cada parágrafo. “Há quem ache que o futebol do passado é que era bom”, a frase de abertura vai direto ao ponto. “De quando em quando a gente esbarra com um saudosista. Todos brancos, nenhum preto.” Sim, o livro é assumidamente político.
Nem seria preciso saber que a primeira edição de “O negro…” vinha apresentada com entusiasmo por Gilberto Freyre para situar a obra num momento histórico de afirmação da identidade brasileira em que grande parte de nossos intelectuais acreditava no mito da “democracia racial”. Antes de ser denunciada como mascaradora de conflitos, a tese cumpriu o papel progressista de tornar ridículos os defensores do “embranquecimento” como solução para os problemas do país, e Mario era um de seus cultores. Andou repensando essa posição – como prova o fato de ter cortado da segunda edição esta frase espantosa, sobre o momento em que os negros já se haviam firmado como excelentes jogadores: “em foot-ball não havia o mais leve vislumbre de racismo” – mas não pôde impedir que a própria moldura da obra exalasse um otimismo racial datado.
Ocorre que repudiar o livro por conta disso seria um erro tão grosseiro quanto dizer que “Os sertões” perdeu sua condição de obra-prima quando se comprovou que os conhecimentos “científicos” em que se baseou Euclides da Cunha eram pura ideologia. Da mesma forma, se a dimensão sociológica de “O negro…” soa ultrapassada, seu valor literário não encolheu um centímetro. Talvez tenha até crescido. Isso porque Mario Filho podia achar que fazia ciência social, anunciando com orgulho que ali estava “a verdade pura e simples”, mas o que fazia era arte. Os cientistas sociais que deem um jeito de desentranhar da montanha de informações coletada por ele em centenas de entrevistas o material de que precisam para entender com mais rigor as relações raciais no futebol brasileiro. Mario nos dá riquezas de outra ordem.
Nelson Rodrigues, seu irmão e fã declarado, é mais famoso do que ele como intérprete de uma certa “alma brasileira” no futebol. Ambos têm incontáveis pontos em comum, mas uma diferença radical: onde Nelson inventava deslavadamente, transformando sua subjetividade no principal jogador em campo, Mario preferia pesquisar, ouvir, observar. É isso que o faz superior (como cronista esportivo) a Nelson. Tinha alma de repórter, o que pressupõe uma saudável dose de humildade, sem prejuízo da capacidade de, como o irmão, encenar batalhas épicas num campinho de arquibancadas de madeira. Não é à toa que Mario foi o maior incentivador da construção do Maracanã, que acabaria batizado com seu nome. Ele pensava grande.
A ambição jornalística do livro é impressionante: contar com minúcias, sempre pelo viés da progressiva ocupação de espaços por jogadores negros e mulatos, a história do futebol carioca desde o tempo em que os melhores em campo eram todos ingleses, no início do século XX. Dar conta desse recado já seria muito, mas Mario o faz com um talento de escritor que raros jornalistas esportivos têm ou tiveram em qualquer época. É forte a tentação de dizer que ele escreve como se falasse, mas vale lembrar que nem o orador mais experiente conseguiria – não de improviso – se expressar com tanta clareza.
Tome-se como exemplo a cena de comédia do mulato Friedenreich, apresentado como o primeiro grande ídolo do futebol brasileiro, lutando com o cabelo que “não negava”: “Primeiro untava o cabelo de brilhantina. Depois, com o pente, puxava o cabelo para trás. O cabelo não cedendo ao pente, não se deitando na cabeça, querendo se levantar. Friedenreich tinha de puxar o pente com força, para trás, com a mão livre segurar o cabelo. Senão ele não ficava colado na cabeça, como uma carapuça”.
Ou o comentário sobre a lógica estritamente esportiva, e não humanitária, que fez o Vasco encher seu time de negros e mulatos para ganhar o título carioca de 1923, o primeiro dos “pequenos” a conseguir tal feito, dando início a uma revolução: “O Vasco não fazia pretos: para o preto entrar no Vasco tinha de ser já bom jogador. Entre um branco e um preto, os dois jogando a mesma coisa, o Vasco ficava com o branco. O preto era para a necessidade, para ajudar o Vasco a vencer”.
O último exemplo é extraído da parte final do livro, quando o melhor jogador do mundo aparece como símbolo máximo do orgulho da raça, fiel à sua cor mesmo no auge do sucesso, anos-luz à frente daquele Robson do Fluminense que, entrevistado sobre racismo no futebol, respondera ao autor com candura: “Eu já fui preto e sei o que é isso”. Diz Mario Filho: “Dondinho era preto, preta dona Celeste, preta vovó Ambrosina, preto o tio Jorge, pretos Zoca e Maria Lúcia. Como se envergonhar da cor dos pais, da avó que lhe ensinara a rezar, do bom tio Jorge que pegava o ordenado e entregava-o à irmã para inteirar as despesas da casa, dos irmãos que tinha de proteger? A cor dele era igual. Tinha de ser preto. Se não fosse preto não seria Pelé”.
É pela capacidade de povoar de gente de verdade – com seus dramas, causos, tiradas, provavelmente suas lendas também – uma paisagem freqüentemente fria, composta de datas e troféus, que o livro de Mario Filho resiste ao tempo. Na sua prosa de enganadora simplicidade jogadores consagrados dividem o palco com outros cujo brilho fugaz foi soterrado por décadas de esquecimento. Todos ressurgem imponentes como heróis de uma epopeia e, ao mesmo tempo, humanos, acessíveis, com qualidades e defeitos. Em livro recente, um acadêmico carioca, querendo desqualificá-lo, disse que “O negro…” não é um livro de História e sim um romance. Pegue-se a mesma afirmação com o sinal trocado e ela vira um tremendo elogio. Mario Filho escreveu o grande romance do futebol brasileiro.
7 Comentários
“O Vasco não fazia pretos: para o preto entrar no Vasco tinha de ser já bom jogador. Entre um branco e um preto, os dois jogando a mesma coisa, o Vasco ficava com o branco. O preto era para a necessidade, para ajudar o Vasco a vencer”.
Ainda em que nos dias de hoje todos os clubes (exceto o Vasco, claro) admitem os pretos em seu plantéis por puro altruísmo equanimidade, e não para ajudar o clube a vencer.
Não foi a primeira e com certeza não será a última vez que se buscará tentar desqualificar a trajetória do Vasco. Por isso talvez nosso estádio teha nome de Santo, e não o nome de um santificado.
Que comentário hilário, Davi!
Parabéns, garoto, pela presença de espírito. Deve estar experimentando aquela mistura de sentimentos, né, afinal, segunda divisão não é mole… Mas tem toda razão, a intenção do post foi claramente a de tripudiar do seu Vascão, eu também percebi.
Esse livro do Mário Filho é um preciosidade. Gostaria, no entanto de te parabenizar pelo “drible”, livro sensacional. Ouvi falar sobre a obra e vi você no Programa do JÔ. Ao chegar numa livraria, a aura (não sei bem definir que cor) que emanava do livro me atraiu. Acredito que são os livros que nos escolhem e assim comprei e devorei o seu texto, ávido para encaixar as peças desse quebra-cabeças. Genial, sem demora um drible, depois outro e outro. Escanteios, jogadas agudas e nenhum “impedimento”. Sua reta final, como qualquer jogo dramático foi carregado de tensão e ao final, após mais alguns dribles, um gol, de placa, futebol arte, literatura arte e a certeza do título. Um dos melhores livros que li na minha vida e olha que não foram poucos!! Parabéns e muitos outros dribles e gols em sua literatura campeã. Um abraço.
Guilherme Guaral
Caro Guilherme, obrigado pelo comentário generoso. “O drible” tem me dado muitas alegrias e sua mensagem é uma delas. Grande abraço.
“Eu já fui preto e sei o que é isso” AHAHAHAH ( essa bem poderia ter sido dita pelo Michael Jackson…). Ainda no campo das pérolas futebolísticas, dizem que certa vez foi perguntado a um jogador qual era a sensação de jogar em Belém (PA), ele respondeu que era um prazer e uma emoção jogar na terra de Jesus Cristo, ehehehe.
Sérgio, li “A hora da estrela”, uma indicação que há algumas semanas lhe pedi. Realmente gostei!
Mas, adiante, fui lá eu reler um antigo post da namoradinha inglesa, para saber se ela, em parte, não tinha razão sobre a Clarice…
o livro é um lixo, desculpe,
mas é um lixo