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Nas lacunas, a genialidade de Shakespeare

06/07/2012

Por Maria Carolina Maia

Numa mesa rara na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), um finado autor brasileiro deu lugar a um finado estrangeiro. Shakespeare, que como bem lembrou o mediador Cassiano Elek Machado é um dos maiores, se não o maior escritor de todos os tempos, foi teve sua genialidade reconstruída pelos especialistas Stephen Greenblatt (de Como Shakespeare se tornou Shakespeare e do novo A Virada, ambos publicados no país pela Companhia das Letras) e James Shapiro (1599: Um Ano na Vida de William Shakespeare, lançado pela Planeta, e Quem Escreveu Shakespeare?, da Nossa Cultura). Para ambos, a força de Shakespeare se deve às lacunas que ele criou em suas obras.

Homem da virada do século XVI para o XVII, Shakespeare (1564-1616) atuou num período em que o teatro era quase tão artesanal quanto o oficio de seu pai, um homem que fazia luvas no interior da Inglaterra. Trabalhou sobre o palco, como ator, e por trás dele, escrevendo peças quase sempre baseadas em enredos já existentes. O seu segredo, o que o tornava tão especial e popular, era, como chamou Greenblatt, o tipo de “reciclagem”que fazia dos textos dos outros. Ou, mais exatamente, o que ele sacava desses textos.

“Shakespeare sempre se baseava no trabalho de outra pessoa, ele não tirava suas histórias do nada. Rei Lear, por exemplo, já havia sido encenada antes de Shakespeare escrever a sua peça. A prática de copiar era comum na época, como é ainda hoje: se você for ao cinema, vai ver que muitos enredos são reciclados, com alguns cuidados para evitar problemas legais”, disse Greenblatt. “Mas Shakespeare tinha o dom de escrever, sabia o que levar ao palco. Ele tirava das peças que reescreva a passagem que dava sentido à história e, a partir dessa lacuna, dava fazia o texto ressoar. Um gênio.”

Ao responder a uma pergunta da plateia – por que justamente a frase ‘Ser ou não ser, eis a questão’, de Hamlet, se tornou a grife do autor –, Shapiro voltou à questão das lacunas. Além de apontar para uma crise existencial e para a relação entre pai e filho, a frase, que numa primeira versão da peça era “Ser ou não ser eu, eis a questão” faz uma pergunta. “As frases que ficam na nossa memória são as que lançam questões, não as que dão respostas.”

Outras lacunas deixadas por Shakespeare, essas não intencionais, ajudaram a transformá-lo em mito. Na época em que viveu, não havia a preocupação em registrar a vida de artistas famosos. “Não é chocante não termos documentos que comprovem o trabalho de Shakespeare. Não era comum as pessoas se interessarem pelo filho de um artesão, de um homem que fazia luvas, ou mesmo por um dramaturgo”, disse Greenblatt. “Mas existem o seu registro de batismo e comprovantes de impostos pagos por ele.”

Foi a falta de prova de sua atuação no teatro que levou eruditos como Mark Twain e Sigmund Freud a questionar a autoria de algumas de suas obras. A questão sobre quem escreveu Shakespeare, que dá nome ao último livro de Shapiro, não passa, segundo o professor, de uma teoria da conspiração.

4 Comentários

  • dorinha 06/07/2012em23:31

    o que significa exatamente dizer que o Shakespeare fazia “reciclagem” dos textos dos outros?
    Eu fiquei muito curiosa pra saber se na opinião da especialista que, sem dúvida nenhuma, entende muito do assunto, se ela também acha que Camões ou não sei mais quem fazia reciclagem de outros, porque se por “reciclagem” ele entende “influência”, então a sua análise também é uma reciclagem do que as pessoas estavam discutindo na Flip. Eu não entendi se ela quis usar o termo reciclagem de modo depreciativo ou se foi apenas um lapso de vocábulário. Eu achava que as pessoas que opinavam sobre coisas de literatura já tinham ouvido falar alguma vez daquela tal de imitação mimética, será que é isso que ela estava querendo explicar?

  • tiago 06/07/2012em23:45

    Eu acho que a autora desse texto tem uma falha de compreensão literária. Ela não percebe que fazer referências não significa “reciclagem”. Fazer referências tampouco chega a ser mimese. Quando alguém está escrevendo algo e se lembra, por exemplo, de um trecho do inferno de Dante que se parece com aquela situação que a pessoa está vivendo e quer descrever, ela pode fazer referências implícitas ao trecho de dante, inclusive inserindo frases para que o leitor, se tiver lido Dante, saiba identificar. É um modo de causar empatica e identificação por afinidade com o leitor. Quem não leu Dante, azar o dele que não vai entender. É por isso, inclusive, que não entendemos muitas obras consideradas “difíceis”ou “incompreensíveis”. Todos os escritores fazem isso desde Homero. O próprio Dante fazia referências a Eneida e a Odisseia. Existe uma lógica e conexão entre as diferentes obras que são produzidas no mundo literário, porque as pessoas utilizam influências e também influenciam. E há ainda os que fazem de modo mais explícito hoje em dia, como Murakami e outros, citando explicitamente as influências, e não se trata de reciclagem. Fácil mesmo deve ser escrever um livro assim: você assiste um video caseiro e vai descrevendo a cena, sem precisar usar a imaginação ou lembranças, mas apenas baseado na realidade que alguém observa na comodidade do windows player e nos diálogos que a pessoa copia do que disseram pessoas na vida real, porque a imaginação seria muito limitada para inventar diálogos em vez de copiar o que as pessoas conversam na vida real.