Imagine que Nelson Rodrigues não morreu. Às vésperas de completar cem anos, tem um blog chamado A vida como ela ainda é, que atualiza dia sim, dia não (a idade pesa), embora mantenha com as tecnologias digitais uma relação irônica e cheia de ambiguidade. Aproveita-se do que elas têm de prático, mas sente falta do teclado pesado da máquina de escrever. Só consegue continuar publicando porque já não precisa frequentar redações, resolve tudo do sofá de casa, mas morre de saudade do papo furado com os colegas da Geral e do Esporte. Acha que a humanidade se amarrou de bom grado ao pé da mesa e que o computador pessoal, o notebook, o smartphone, o tablet – que nomes absolutamente abomináveis! – não passam de versões metidas a besta da cuia de queijo Palmira.
Nelson sabe que o mais descolado animador de rede social não conseguiria atravessar a rua sem ser atropelado pela carrocinha do Chicabon. A certeza de que os cretinos fundamentais venceram a guerra o atormenta um pouco. Não porque um dia tenha duvidado que esse fim seria inevitável, mas por ter sido incapaz de antever, distraído que andava com a cretinice vermelha dos bigodudos de capote, o que aprontavam aqueles cretinos imberbes de gola rulê da Califórnia. Nada disso o impede de, quando não está falando ao telefone com o Jabor, que liga para ele todo dia, metralhar frases no Twitter, um formato para o qual, sem saber, se preparou a vida inteira:
A ficção, para ser purificadora, precisa ser atroz. O personagem é vil para que não o sejamos.
Quero crer que certas épocas são doentes mentais. Por exemplo: a nossa.
O jovem só pode ser levado a sério quando fica velho. Aos 18 anos, o sujeito não sabe como se diz boa-noite a uma mulher.
Nem sempre os outros tuiteiros recebem Nelson com indiferença. A provocação contra o que ele sempre considerou a ditadura cultural dos jovens até que surte efeito: logo o estão xingando de gagá, múmia, idiota, invejoso, ridículo, entre outras ofensas. Isso o anima a ir em frente:
Que boa besta era o Marx!
Aguarda meia hora. Nada, silêncio total: ninguém está nem aí. Corrige então a pontaria:
Que boa besta era o Steve Jobs!
Agora sim! Nelson vê desabar aquela tempestade virtual de quinto ato de Rigoletto e sorri, eterno.
9 Comentários
Muito bom! Ri várias vezes, porque já vi alguns tentando “captar” a escrita do Nelson, mas sempre soa meio estereotipado. Mas lendo seu texto, Sérgio, parecia que realmente o Nelson estav ali, em seu apartamento sossegado, resmungando a torto e a direito.
ahahahahaha grande nelson, faz muita falta
O que eu gostei mais foi da maldade com o Jabor. Saudações.
Ótima homenagem, Sérgio! Sempre acho bom lembrarem o “taradão ilustre”, como o chamava Oswald de Andrade, que recebia de troco a alcunha “vaca premiada”.
Encapsulou à parfeição a imagem que tenho do grande Nelson! Um proto-troll brilhante, hehehe!
Excepcional!
Obrigado, meus caros. Fiquei surpreso de ver o Nelson reaparecer depois de tanto tempo, mas nossa história vem de longe. Desde o primeiro conto do primeiro livro. Há doze anos lancei “O homem que matou o escritor” e lá estava o ilustre tricolor como personagem (ao lado do Otto Lara Resende) da história de abertura, “O argumento de Caim”. Será coisa do sobrenome? Abraços a todos.
SérgioParabéns pelo belo texto sobre o Nelson!
Leio muito os seus textos e gosto deles.
Sou pernambucana e convivi com o Nelson Rodrigues, em vida, naturalmente…
Você é primo dele? Então somos contraparentes.
Abraço,
Inah
inah@smartsat.com.br
Olá, Inah, como vai? Obrigado, fico muito contente que goste. Não, não tenho nenhuma relação de parentesco com o Nelson. A de discípulo com mestre, de certa forma, tenho, principalmente na questão técnica do diálogo. Você é parente dele? Um abraço.