É fácil reconhecer que “Nora Webster”, do irlandês Colm Tóibín (Companhia das Letras, tradução de Rubens Figueiredo, 398 páginas, R$ 54,90), é um grande romance. Difícil é explicar por que é assim. Em outras palavras, a rendição do leitor às artes e artimanhas do autor é imediata, garantindo uma leitura imersiva e um interesse apaixonado pela protagonista e pelas pessoas que lhe são caras, mas o crítico tem tarefa mais cascuda: determinar o que, num texto que é um implacável exercício de contenção emocional e sobriedade narrativa, confere grandeza a uma história tão pequena, tão banal, e termina por desenhar na imaginação do leitor uma personagem feminina que parece viva como poucas na história da literatura.
“Nora Webster” é um romance realista que cobre três anos na vida da personagem-título, entre o fim dos anos 1960 e o início dos 70. Dona de casa quarentona do interior da Irlanda, Nora acabou de ficar viúva quando o narrador em terceira pessoa começa a acompanhá-la com uma fidelidade que não vai esmorecer até o ponto final. Não há alternância de pontos de vista e a rigor, com exceção de algumas recordações esparsas de Nora, não há flashbacks. “Isso era passado, pensou Nora enquanto entrava na sala, e não podia ser recuperado”, anota o narrador logo no início.
A seta da história aponta apenas para o futuro, ainda que o avanço seja lento, movido pelas ações necessárias e quase sempre sensatas da protagonista: vender a casa da praia para fazer frente à queda na renda familiar, explicar a decisão aos quatro filhos – dois deles ainda crianças – sem preocupá-los demais, arranjar um emprego na transportadora local em que trabalhou quando solteira, pintar os cabelos. Na pequena, caretíssima Enniscorthy, onde não há desconhecidos e seu marido era um professor querido por todos, Nora se sente a princípio numa prisão, com o resto da vida inteiramente traçado à sua frente – uma vida cinzenta. A própria compaixão que enxerga em todos os olhares é uma forma de opressão.
É claro que a trama do romance, se assim podemos chamá-la, será a da progressiva libertação de Nora. Nenhuma surpresa aqui. O toque de mestre de Tóibín está na mão leve com que desenha, deixando grandes vazios na tela e passando a quilômetros do melodrama e de qualquer sombra de clichê feminista, a comovente trajetória de autoafirmação de uma mulher numa sociedade patriarcal, contra um pano de fundo de grandes transformações sociais e comportamentais que, no entanto, chegam atenuadas àquele fim de mundo, reflexos de reflexos – como as fotografias que seu filho Donal faz das transmissões televisivas do pouso na Lua e dos protestos que culminam no famoso Domingo Sangrento, em 1972, quando tropas inglesas abriram fogo contra manifestantes católicos desarmados em Derry, na Irlanda do Norte.
Talvez uma forma de explicar a magia conjurada pelo autor seja levar em conta todos os recursos literários que, podendo usar, ele não usa. O texto é estilisticamente franciscano e não busca ser belo em si, nunca dá a impressão de estar enamorado das palavras – o que confirma Tóibín como antípoda perfeito de seu compatriota John Banville. A voz narrativa adota o ponto de vista de Nora, mas jamais abusa da intimidade com ela: numa decidida recusa à psicologização, nada remotamente parecido com um fluxo de consciência ameaça irromper na página. Os pensamentos da protagonista a que temos acesso são em sua maioria diretos, pragmáticos: ela se irrita, acha graça, fica ofendida, sente medo etc.
Se isso distancia Tóibín do mais famoso de seus compatriotas, um dos grandes mestres do fluxo de consciência, é curioso observar como “Nora Webster” passa longe de James Joyce também no completo desinteresse pela escatologia e pelo sexo. Talvez Nora chegue a desejar algum homem depois da morte do marido, mas não somos informados disso. Mesmo descrições físicas da personagem principal – ou de qualquer outro – são itens raros, quase sempre restritos a peças do vestuário.
Tal comedimento do narrador, que se poderia chamar de compostura, tem uma contrapartida no plano do enredo. Tóibín conduz sua sequência cronológica de episódios – e muitas vezes chega a abusar monotonamente das locuções adverbiais de tempo para introduzir cenas e capítulos – com a evidente preocupação de evitar tudo o que possa soar literariamente construído. Se aqui e ali temos a impressão de que uma trama clássica começa a se armar para arrastar o leitor em sua malha, a armadilha logo se desfaz.
Será que a estranha tia Josie fez algo horrível com os meninos quando cuidou deles, enquanto Nora acompanhava o marido no hospital? Provavelmente não, mas jamais teremos certeza. Quando a protagonista começa a exercitar sua independência e se filia ao sindicato, para horror dos patrões, tudo indica que ela vai perder o emprego e mergulhar na penúria – mais um alarme falso. Como escreveu a americana Jennifer Egan, craque da intriga literária bem urdida, em sua resenha no “New York Times”: “Cada uma dessas crises se dissipa, como frequentemente ocorre com as crises na vida real (em oposição à ficção, em que servem como elementos de uma trama)”.
Se a compostura do narrador dá o tom geral do romance, seria um erro confundi-la com convencionalismo ou timidez artística. Tóibín, que declarou em entrevistas ter se inspirado na história de sua própria mãe para escrever “Nora Webster”, consegue com seu tratamento notavelmente espartano do material romanesco criar o retrato de corpo inteiro de uma mulher de verdade: mãe amorosa mas às vezes ausente, malvista pelas irmãs, orgulhosa, sem a menor vocação para heroína, Nora acaba se impondo por sua impressionante dignidade. O fato de encontrar na música a expressão máxima de sua emancipação é significativo: Colm Tóibín parece ter buscado atingir neste romance algo que não pode ser posto em palavras, que para sempre estará além delas:
“O que Nora notou foi uma ternura prolongada nas notas, um modo delicado de abordar a melodia. O tom não era nem doce nem incisivo; pairava estranhamente entre um e outro. Uma voz sincera, pensou Nora, e um canto perfeito e belo.”
2 Comentários
Palmas, palmas. Acrescento ter gostado muito de O testamento de Maria, resenhado aqui, único livro de Colm Tóibín que li e um dos melhores textos que li em 2013, só atrás de Reparação e de O retiro dos macacos artistas, integrante da coletânea O homem que matou o escritor. Nora Webster foi comprado há semanas e está empacotado ainda, pelo menor tempo que me for possível, uma vez lida esta resenha.
Valeu, Thiago. Obrigado pela consideração com minha velha novela. Acho que você vai gostar da Nora. Um abraço.
Estou deslumbrada com o romance, depois de ter terminado Madame Bovary cheia de exageros do romance açucarado, mergulhar na vida de Nora me fez ver que muitas vezes levo a vida muito a sério, e que dá para ser uma pessoa melhor: constante mas real. Parabéns SR. Colm