O product placement, mais conhecido no Brasil como merchandising, é tão comum no cinema e na televisão quanto atrizes siliconadas. Parece que já passamos da fase de debater a ética da coisa, que de alguma forma se naturalizou: afinal, o personagem tem que tomar uma cerveja naquela cena, não tem? Está no roteiro. Então por que não fazer da cerveja uma Bohemia e descolar uma grana que – naturalmente – será reinvestida em prol da qualidade artística do produto final? Hein, hein? (Um espírito-de-porco pode argumentar que, uma vez começado esse jogo, é inevitável que mais e mais personagens virem enxugadores de cerveja, mesmo que sejam atletas de ponta em véspera de Olimpíada, mas ninguém vai lhe dar ouvidos.)
Na literatura é diferente: a jogada ainda provoca escândalo, como se viu depois que dois autores americanos de livros juvenis, Sean Stewart e Jordan Weisman, admitiram ter reescrito as frases em que mencionavam o batom e outros produtos de maquiagem usados por uma personagem num livro recém-lançado, Cathy’s book, para encaixar as marcas registradas da grife Cover Girl. Imoral? Onde vamos parar?
A escritora Jane Smiley publicou no “Los Angeles Times” um artigo em que troca de saída esse enfoque chocado por um cinismo curioso: se a divulgação que a empresa ofereceu em troca da pequena propaganda fez a tiragem inicial do livro de Stewart e Weisman saltar de 30 mil para 100 mil exemplares, qual é o problema?
O pragmatismo de Jane Smiley é menos vendido do que parece à primeira vista. Ela acaba concluindo que recusaria o product placement, mas por um critério estético – por medo de que ele lhe entulhasse a prosa. Antes disso, lembra que não é de hoje que autores de ficção mencionam marcas registradas, quase sempre para dar às suas obras uma certa pulsação de vida real. Ilustra o argumento com um trecho de “Em busca do tempo perdido” em que Albertine fala da água mineral de Vichy: “Quando a servimos, sobe do fundo do copo uma nuvem branca que se dissolve e desaparece se não a bebermos imediatamente”.
Isto a articulista não diz, mas digo eu: a diferença é que Marcel Proust não decidiu escrever sobre a Vichy por dinheiro, mas por um critério exclusivamente artístico. Ou seja, foi o que lhe deu na telha. Por outro lado, os autores americanos em questão nunca quiseram ser Proust – seu trabalho já era comercial muito antes de enfiarem reclames no meio do texto. Aguardo ansiosamente os próximos capítulos.
8 Comentários
Outro dia assisti a um trecho de um episódio de novela. Não foi culpa minha! Estava passando na televisão ligada no ambiente. Juro que não pude escapar.
Mas enfim, o fato é que no meio da novela, duas personagens começam a dialogar. E o diálogo INTEIRO, INTEIRINHO, de cabo a rabo, é pura propaganda. Nem me lembro qual era o produto, mas o autor teve a desfaçatez de, sem o mínimo de maquiagem, parar a trama pra que duas personagens ficassem discutindo as incríveis qualidades de sei lá qual produto.
É demais, isso. Você não pode mais assistir nem a uma historinha sem que queiram te martelar com propaganda. E o pior é que ficou completamente deslocado, péssimo, simplesmente intragável. Vão é acabar perdendo público.
Já estão fazendo merchandising em gibis nos EUA… Da BMW, se não me engano.
A inserção de marcas em situações de conteúdo, nas quais o “consumidor” está desavisado, é apresentada como uma abordagem criativa, por parte dos profisionais de mídia. É impressionante como estes subestimam a capacidade do leitor/espectador rejeitar mensagens invasivas. No excesso, leitor, mídia e anunciante saem perdendo.
Sérgio, essas coisas são tão simples. Da mesma maneira que novela não é dramaturgia que preste e que o Milton “Merchâ” Neves (conhece?) não é jornalista esportivo, isso não é literatura. Falso problema, really.
Caro Sérgio,
Se a Skoll pagar tem personagem bebendo ceveja. Se a Skoll não pagar não tem ninguém bebendo nadinha.
Exagero?
Observem os carros. Ou são de marca- e portanto merchandising – ou são monstrengos irreconhecíveis.
Vejam os armários das cozinhas. Ou estão repletos de produtos de marca$, ou exibem rótulos ostensivamente em branco.
Já existem planos para levar ao ar uma novela inteiramente patrocinada por uma marca poderosa. O que nos levará a um cenário dantesco: a criação artística livre é que entra de contrabando no merchandising amplo, geral, uma maré que nos afoga, anestesiados e babando na gravata.
É feia a coisa.
abração,
ma
Again… eu não reclamaria se os livros, CD, DVD etc viessem com propagandas mas que fossem distribuidos de graça.
Será que não é por isso também não explica o fato de que 60 milhões ficam assistindo novela e um ou outro fica na privada lendo Italo Calvino?
é sutil a diferença, creio. porque os produtos nos proporcionam algum prazer, é certo também. se o autor quer fazer poesia com as sensações gasosas que uma específica marca de bebida – água que seja – lhe causa, ainda estará de posse de sua autonomia, sua liberdade criativa, artística.
o modo como isso acontece é que são elas. Warhol pintava as latas de sopa – mas em que contexto!
é questão que meche fundo no espírito do artista, e pede seu desnudamento. talvez nem seja necessário. talvez seja apenas um “mal do século” a mais, avassalador sobre tantas questões mais importantes, e agora sobre a criação artística.
pode ser merchandising, não defendo. mas pode, por outro lado, parecer muito e ser apenas um “arroubo” do artista, que não levou nada em troca mas pinta, com as cores do real – hoje francamente capitalista (e capitalizável) – a dor que deveras sente.
…escrevi mexe com ‘ch’. horrível. eu, que vivo me revisando. deve ser a densidade da hora, do negrume mergulhado em que escrevo…