O romance tem barriga. Se perdê-la, vira novela. A palavra barriga está carregada de conotações negativas que, no entanto, não quero absolutamente expressar. Pois é a barriga que torna o romance superior à novela: a imperfeição faz dele o veículo perfeito para a imitação literária (não necessariamente realista, é claro) da vida. Diante da barriga morna e fértil do romance, a novela é, no máximo, uma top model: linda, mas meio anoréxica. Com ela temos um caso. Com o romance, casamos. Um tanto fria, mais propícia à expressão da literatura como puro jogo, a boa novela tem necessariamente a musculatura definida. Sabe o que está fazendo, planejou a vida inteira, jamais esbarra nos móveis, mas não consegue disfarçar um brilho cruel no fundo do olho. O romance, não: este pode ser sedentário, triste, doentio, de pele áspera e hálito azedo, mas também alegre, ativo, cheiroso, úmido, confortável. Pode ter quantas caras e jeitos tiverem as pessoas, mas nunca perde a mania de se perder um pouco nas encruzilhadas, marcar passo, tropeçar, pedir perdão. Um bom romance nos dá a ilusão de ser feito mais de vida que de literatura. É a barriga que o salva.
21 Comentários
Olha eu aqui!!!!!!
Que história é essa de romance ser superior à novela? Tá parecendo a música Amor e Sexo da Rita Lee.
Hum. Tá parecendo aquela história (de quem, mesmo? Martin Amis?) do sujeito que escreve todo desleixado, de roupão e chinelos de pompom. E, claro, barrigão. Não sei não. Em termos de criação literária, pra mim é assim: o que rolar, rolou. Sem planejamento familiar, entenderam?
Que texto maravilhoso! Embora não sei se concordo com a idéia sugerida de que o romance é superior à novela. Uma boa novela é foda – dificílima. Acho que é por isso que quase não se escrevem novelas no Brasil.
Parabéns pela imagem, Sérgio!
Novela é o romance preguiçoso.
Metamorfose não era uma novela?
Se o “X” da questão é a barriga, então o Saint-Clair é um romance.
Sérgio, o livro Sementes de Flowerville também é uma novela… certo?
Lembra aquele texto do Vargas Llosa sobre Borges? Que Borges era impossibilitado de usufruir das imperfeições do romance (em verdade da novela também, pernóstico que era) ou seja, da vida. Mas é uma ótima analogia, sem esquecer que os russos (que eu vou ler) além de barriga tem barbas longas – procede?
Algumas das novelas que acho perfeitas: “Aura”, do Carlos Fuentes. “As pequenas larvais azuis da Amazônia”, Carlos Telles Ribeiro. “A metamorfose”, Kafka (sim, Tibor, ela é uma novela). “Um beijo de colombina”, Adriana Lisboa.
O problema é que nem sempre se dá nome aos bois, isto é, nem sempre uma novela é chamada de novela. Tem editora que costuma chamar de “romance curto”, o que é uma classificação absurda e ridícula. Mas aí voltamos àquela questão de se uma novela (ou conto) deve ser classificada como tal pela sua extensão ou por características inerentes à sua constituição. Prefiro essa segunda maneira de classificar. Nesse sentido, uma novela é uma obra literária que, diferentemente do romance, possui um número menor de personagens e nenhuma subtrama.
Tibor, sou um daqueles romances do século XIX, com 900 páginas. Se fosse um livro, seria um monstruoso (leia-se “volumoso”) livro do Dickens.
O maior romancista, Cervantes, talvez tenha sido também o maior novelista. Alguém aqui já leu as insuperáveis Novelas Ejemplares?
Essa história de superioridade de um gênero sobre o outro é muito relativa. Há novelas cujos contornos não se encaixam muito bem no figurino da top model anoréxica. Veja o caso da A morte de Ivan Ilitch de Tolstói. Não abunda nela a vida? (Um aparte: não é curioso que romancistas de grande fôlego, como Cervantes e Tolstói, sejam também novelistas exímios?)
Há romances, por outro lado, escritos num rigor tal que nada neles é excessivo. São verdadeiros blocos de granito. Não é este o caso dos romances de Flaubert?
Confesso que não me inclino muito à narrativa curta, esse gênero tão ao gosto moderno. Gosto muitíssimo mais das narrativas longas, tortuosas e sobretudo imprevisíveis, como o magistral Tirant lo Blanc. Infelizmente, obras desse gênero que sejam verdadeiramente bem sucedidas são raríssimas.
Gostei do texto. Só não sei se concordo com essa história do romance ser mais “vital” que a novela. Isso depende, não? “O velho e o mar”, por exemplo, me parece bem mais “feito de vida” do que “Ulisses”. O que não significa que seja superior, é claro.
Como?
Um gênero é superior ao outro?
Sei não…. não vejo como um mau romance seja superior a uma boa novela. Não é o gênero que determina a excelência do texto. Acredito que é a excelência do texto que determina sua qualidade — isso não é mero jogo de palavras…
Outra: palavras/páginas em excesso determinam a qualidade?
Sei não…
PS. Será que esse post teve alguma coisa a ver com os comentários de que “Os detetives selavagens”, do Bolaño, poderia ter menos páginas, Sérgio?
Sim, Tibor, “Sementes de Flowerville” é uma novela.
Nada a ver com o comentário anterior, Cezar. E é claro que um bom isso é melhor do que um mau aquilo – não quer dizer muita coisa. Só não acredito que seja gratuito o lugar de forma literária por excelência que o romance conquistou no Ocidente e, mesmo com todos os solavancos, se recusa a perder.
Eu não disse que um é mais “vital” que o outro, apenas que o romance se presta melhor à “imitação” da vida. Questão de ritmo. A vida é cheia de barrigas, quase que só tem barrigas. A novela é depurada demais para espelhar isso. Mas é claro que ao dizer isso estamos generalizando, aplainando sutilezas.
Isso posto, gosto muito de uma boa novela.
Minha patroa também gosta muito de uma boa novela. Ela acha que “Senhora do Destino” é imbatível. E vocês?
P.S.: Acredito que agora estou comentando o assunto do tópico. Certo?
Borges não era pernóstico. Enxergava longe (mesmo com os olhos gastos).
É possível que o texto com o qual somos brindados hoje pelo Sérgio, tenha surgido de uma sugestão do “maestro”:
“o livro que estou entrevendo… constaria de uma série de prólogos de livros que não existem” (em Prólogos com um prólogo de prólogos de 1975).
Atualíssimo.
Não considero um gênero melhor do que o outro. Pela pressa do dia a dia, talvez alguns considerem textos menores mais adequados à nossa época.
Apesar da diferenciação clara entre os gêneros, seja na ênfase dos eventos ou na velocidade da passagem de tempo, por exemplo, creio que um ou outro será tão mais ou menos palatável quanto à sua adequação ao gosto do freguês (leitor).
Como os óculos de Juan Carlos Onetti (que apesar de curtos, lhe eram adequados).
Para evitar a barriga: musculação literária
Tendo a concordar com você, Sergio. Há em muito romances esses momentos largos e “ocos” a que chama de barriga e, ao final da leitura, nos parecem indispensáveis na construção da obra no nosso imaginário. Numa novela, essas barrigas incomodam mais. Engraçado é que em inglês romance chama de “novel” e em francês uma “nouvelle” pode ser um conto. Acho isso um pouco irrelevante, a nomenclatura, digo. Para mim um romance está para um soneto como um conto está para um haicai e a novela… Sei lá.
Alguns números sobre o post “Os maiores da língua espanhola” (obrigado MS-Excel):
Números por países:
Espanha 32,Argentina 23,Colômbia 13,Chile 10,México 10,Peru 4,Cuba 2,Uruguai 2,Venezuela 2,Guatemala 1,Paraguai 1
Os campeões (cada um com três indicações):
Antonio Muñoz Molina (ESP), Gabriel García Márquez (COL), César Aira (ARG), Diamela Eltit (CHI), Javier Marías (ESP), Juan José Saer (ARG), Roberto Bolaño (CHI)
Belas definições, Sérgio.
Discussões à parte, seu texto está sensacional.