Não há nada no Brasil que se possa comparar à epidemia do tijolo que assola a ficção internacional, sobretudo a americana. Aqui “Viva o povo brasileiro”, de João Ubaldo Ribeiro, de 1984, com suas 640 páginas, é considerado um livro longuíssimo, quase uma aberração. Historicamente temos “Os sertões”, de Euclides, e é verdade que “O tempo e o vento”, de Erico Verissimo, daria um cartapácio para lá de exuberante se saísse num volume só. Alguém mencionou “A pedra do reino”, de Ariano Suassuna (756)?
De todo modo parece que, depois de “Viva o povo” – concebido, segundo o próprio João Ubaldo, para ser antes de mais nada “um livro grosso”, em resposta a um desafio do editor Pedro Paulo de Sena Madureira –, o único a ir realmente longe nessa corrida é “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves (952!), um livro ímpar por outros motivos além deste. Atrás dele, no último quarto de século, há um vácuo de algumas centenas de páginas e só então começam a aparecer aqui um “Pornopopeia”, de Reinaldo Moraes (480), ali um “O paraíso é bem bacana”, de André Sant’Anna (456), acolá um “Barba ensopada de sangue”, de Daniel Galera (424).
Há poucos anos rolou por aí um pseudodebate sobre a falta de fôlego da ficção nacional, sua quase inapetência para jornadas narrativas acima de 200 páginas. Não foi adiante porque o tamanho é um critério idiota. O maior livro de Jeffrey Eugenides, por exemplo, é “Middlesex”, com suas 544 páginas, mas o melhor ainda é o primeiro, “Virgens suicidas”, que não passa de 216.
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Sem deixar de ser, para juízos individualizados de valor, um critério idiota, pensar no baixo número de páginas da nossa literatura pode quem sabe levar a percepções que sejam, de modo mais sintético que analítico, reveladoras.
Será que nosso narrador médio carece de stamina para sustentar histórias de 500 páginas para cima porque trabalha numa cultura que desconfia das histórias, identificadas com lorotas, golpes, caô? Sustentar um longo arco narrativo requereria do autor não apenas os recursos técnicos de praxe, mas uma força literária de titã a lutar contra os elementos. De comprido, basta o milkshake de dramalhão com tragicomédia das telenovelas.
Sem acesso ao longo curso, compreende-se que esse narrador se volte então para outros aspectos da história, cultivando em sua prosa um movimento de verticalização, de mergulho na linguagem, de aproximação com a poesia e com uma lentidão que tenta compensar, em suas sutilezas, o que se perde de alcance espacial com o encolhimento do enredo.
Ou então, numa estratégia oposta, nosso narrador arma histórias que querem resolver logo a parada, como atletas de pista que ganham em velocidade o que perdem em distância, partindo para a tentativa de chegar rapidamente ao nocaute. A violência como um dos temas – e tons – de eleição da ficção brasileira dos últimos 50 anos deve ter algo a ver com isso. Os personagens trocam murros porque, no fundo, é isso que o narrador deseja fazer com o leitor.
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Outra hipótese – não menos periclitante, mas possível – é a de que contar histórias exige do contador, antes de mais nada, uma combinação de certezas difícil de conjurar. A convicção de que vale a pena contar histórias, em viagra belgique primeiro lugar. A de que vale a pena contar aquela história, em segundo. Em terceiro lugar vem a certeza de estar contando a história tão bem quanto ela pode ser contada, enquanto a quarta e última convicção, talvez a mais difícil, é a de que aquela história, contada daquela forma, terá interesse para alguém.
Vamos combinar que é muita fé na história, no encadeamento estético dos fatos, na peripécia, na reviravolta, para uma cultura popular de corte picaresco e antiépico que tem em Pedro Malasartes e João Grilo dois de seus inúmeros artistas da engambelação narrativa. O cinismo com que o leitor de literatura brasileira encara a dimensão do enredo, sempre pronto a farejar ali o papo furado, o anedótico, o engodo dos malandros, quando não o lugar-comum e o automatismo das lições de moral e cívica ou dos enlatados da TV, esse pé-atrás esteriliza no narrador médio o gozo da simples narração que é uma marca dos livros muito longos – e que nos casos menos bem-sucedidos se confunde com a autoindulgência.
O que faz nosso narrador nesse ambiente hostil? Narra a contrapelo, busca tirar efeito de atritos e dissonâncias, vê-se obrigado a, em alguma medida, ironizar o próprio estar a narrar. Não admira que fique cansado antes da página 200.
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Ou então, claro, não é nada disso.
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Para fechar, não acho surpreendente que a narrativa extralonga goze mundo afora de tão boa saúde na era da velocidade, da mensagem curta, do post e do Twitter. É claro que a literatura responde como qualquer arte à falta de paciência e concentração do nosso tempo. Não necessariamente, porém, a resposta que encontra é concordar com ela.
2 Comentários
Vou colocar um ponto aqui que talvez nao explique muito, mas que acredito, vale ser abordado: Novos escritores sao estimulados a nao escrever seu primeiro livro com mais de 250 paginas, pois as editoras nao apostam em livros longos de desconhecidos…
Interessante nota sobre o “cinismo” do leitor brasileiro ante o enredo (sobretudo de narrativas longas). Eu arriscaria dizer que é um cinismo ante a própria literatura, na era da renascença dos seriados americanos. Não me parece ousado afirmar que, em comparação com o Brasil de leitores dos anos 30, que aceitava estréias de autores como Raquel de Queirós, Jorge Amado, Érico, Lucio Cardoso (todos com 20 e poucos anos de idade) e do repique cultural-literário dos anos 60-70, nós temos hoje um Brasil literário muito empobrecido. Não do lado dos autores, mas dos leitores. Há oferta mas não existe demanda. Quanto à última nota do post, observo que, acompanhando as notícias do mais importante prêmio literário na Alemanha, verifico nos autores que competem por lá a insistência das narrativas longas: 500, 600, 800 páginas.