Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como primeiro traço, certo instinto de internacionalidade. A frase que você acaba de ler é uma cópia quase perfeita daquela que abre o mais famoso texto crítico de Machado de Assis, chamado “Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade”, de 1873. A troca da nacionalidade pela internacionalidade não tem uma intenção rasa de paródia: com sorte, será o ponto de partida para uma tentativa de jogar luz sobre as respostas novas que a literatura brasileira do século XXI – sim, esta mesmo, que contava com 4.203 leitores na última pesquisa – possa estar formulando agora para o velho problema de produzir arte relevante num país situado na periferia econômica e cultural do mundo. Há também, reconheço, uma forma menos benevolente de encarar este parágrafo: como nariz-de-cera (que em jargão de jornalista quer dizer prólogo enfadonho) para uma resenha do recém-lançado romance “O único final feliz para uma história de amor é um acidente” (Companhia das Letras), do escritor carioca João Paulo Cuenca. Espero ser capaz de desmentir essa impressão. O livro de Cuenca é mesmo o gancho deste texto – para insistir no jargão jornalístico – e vai ser abordado na hora certa. Antes disso convém sobrevoar rapidamente um século e pouco de história.
Internacionalidade, palavra dicionarizada mas de uso raro, é aqui um sinônimo de cosmopolitismo, e portanto antônimo de provincianismo. Mas também pode ser, dependendo do contexto, equivalente a desenraizamento, anulação de identidade, em oposição a um saudável mergulho em nossas “raízes” culturais. As configurações do par nacional/internacional nunca foram simples para a cultura brasileira (como provavelmente para a de nenhum país nascido do colonialismo europeu): como expressar uma verdade sobre si mesmo usando uma linguagem alheia, como não produzir apenas adaptações caipiras dos modelos enviados pela matriz? Quando escreveu aquele ensaio, Machado dava uma resposta ousada ao nativismo de José de Alencar e Gonçalves Dias, que acreditavam “nacionalizar” as formas importadas do romance e da poesia ao enchê-las de índios. No lugar dessa ênfase na cor local, na “nacionalidade de vocabulário”, Machado postulava um “sentimento íntimo de nacionalidade”. Aos 33 anos e tendo publicado apenas um romance fraquinho, “Ressurreição”, parecia intuir genialmente a verdade contida na profissão de fé enunciada na última Flip pelo crítico literário inglês Terry Eagleton: “O que me interessa na arte como crítico marxista é a forma, muito mais que o conteúdo. A História habita o texto em seus detalhes linguísticos mais delicados e sutis”.
É provável que a percepção dominante no ambiente intelectual de hoje, em nosso mundo interconectado, seja a de que o “sentimento íntimo de nacionalidade” que Machado de Assis buscava – e que acabaria por alcançar – tenha ficado tão preso no tempo das carruagens quanto sua mania de escrever “cousas”. Não acredito nisso. Se é evidente que se tornou mais complexo o “sentimento de nacionalidade” de gerações que cresceram vendo enlatados na TV, ouvindo rock’n’roll e idolatrando Indiana Jones ou Jaspion, influências que necessariamente vão expressar como parte de qualquer possível “verdade interior”, não me parece que isso represente uma mudança estrutural em relação ao cosmopolitismo eurocêntrico que Joaquim Nabuco professava em 1900, no clássico “Minha formação”, ao escrever que era “antes um espectador do meu século do que do meu país; a peça é para mim a civilização, e se está representando em todos os teatros da humanidade, ligados hoje pelo telégrafo”. Sai o telégrafo, entra a internet, persiste o deslocamento. Assim como persiste um nó: que cambalhota precisa dar um artista para, sendo produto de uma cultura em posição de acachapante déficit comercial com o vasto mundo, devolver a esse mundo uma resposta que não seja apenas o pálido reflexo de um reflexo? Em outras palavras: que contribuição original pode dar o Brasil – no caso que interessa aqui, por meio da literatura – ao famigerado Concerto das Nações?
A pergunta pode parecer um disparate, especialmente num momento em que nossa literatura vem fracassando até na tarefa básica de conquistar o leitor doméstico, mas foi uma inquietação desse tipo que orientou as melhores reflexões críticas do século passado (as deste século ainda não mostraram a cara). Como fazer a arte transcender a dependência? A antropofagia modernista apostou numa carnavalizante – e irônica – deglutição do elemento estrangeiro, uma linha que seria retomada pelo Tropicalismo. O romance de 30 preferiu a abordagem realista das mazelas políticas e sociais geradas por aquela dependência, uma linha que seria retomada sobretudo na poesia e no teatro engajados dos anos 60. Guimarães Rosa encontrou uma vereda original ao levar o experimentalismo formal para passear no sertão. Clarice Lispector, também original, optou por uma apneia suicida em si mesma. O Rubem Fonseca dos anos 60 e 70 inventou uma aguda modernidade urbana – que até hoje projeta uma sombra comprida – com seus marginais impenitentes. Acertos isolados não foram suficientes para demover de seu pessimismo o crítico Antonio Candido: no clássico “Formação da literatura brasileira”, de 1959, ele afirma que, “comparada às grandes, a nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela, não outra, que nos exprime”. Destino terrível, o de ser expresso por “um galho secundário da [literatura] portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim das Musas”. Deveríamos desistir?
A pergunta é retórica, claro. Não há desistência possível. Se o otimismo é uma característica que, como a ingenuidade, renova-se a cada nascimento, acredito ser um bom sinal a forma desencanada – para não dizer voraz – de dialogar com o mundo inteiro e incorporar elementos da cultura de massa que nos pariu, característica de grande parte da literatura contemporânea escrita em português brasileiro, com todas as adaptações de linguagem que isso implica. Descontados os exageros de pose que podem vir no pacote (“Eu escrevo assim porque leio os jovens escritores da Moldávia, conhece algum?”), parece legítimo supor que as inéditas velocidade e amplitude da circulação de informações em nosso tempo alterem alguma variável da velha equação de dependência cultural, num momento em que a própria ideia de “cultura nacional” é abalada tanto de fora, pelo esburacamento das fronteiras, quanto de dentro, pela pulverização de vozes que nela nunca se sentiram representadas.
E ainda nem falei do livro de Cuenca, pois é. Depois eu continuo.
Publicado em 20/08/2010.
7 Comentários
O “saudável mergulho em nossas ‘raízes’ culturais”, logo no início, entrega a opção, segundo Sérgio Rodrigues, do caminho a ser seguido. Nesse sentido, parece que apenas nos resta escolher o equipamento para esse mergulho e tentar projetar um resultado quando da volta à superfície. Mais do que colonialismo europeu, julgo que a trava encontra-se no conceito mais amplo de civilização ocidental. Somos todos herdeiros – como a maioria dos que têm a relevância literária que nos provoca maior interesse – da filosofia, da historiografia, da urbanização, da democracia, da ciência e da tecnologia, do consumo, do cristianismo. Com um grau maior ou menor, as sociedades acabam conformadas sobre e dentro dessas noções. Devido ao “esburacamento das fronteiras”, é cada vez mais impalpável o conceito de nacionalidade. É certo que existem veios a serem explorados, mas com cada vez maiores riscos de que desemboquem no manifesto, no panfleto ou no pitoresco. Há uma relação de dependência do Brasil com relação à Europa, que não é tão somente cultural, mas de caráter civilizatório. E há, portanto, redundância e mesmice. Agora eu pergunto: qual é o processo contemporâneo, quiçá moderno, na civilização brasileira – para além dos “tempos das carruagens” – que tem o potencial estético-literário de relevância e originalidade? E será que, de todas as formas de arte, a literatura é a mais efetiva manifestação estética que representa ou forma um sentido de nacionalidade brasileira?
Olá, Sérgio. Pelo que entendi (fiquei até na dúvida), a literatura brasileira deste século conta com pouco mais de 4.000 leitores? É isso mesmo? A pesquisa à qual você se referiu no seu texto está disponível na internet? Abraço e obrigado.
Caro Paulo, esse número é só uma piada. Abs.
Ah, tá… OK. É que, pelo que vejo por aí, não duvidei, rs… Abraço.
Fico de olho no que as pessoas leem por aí. E os poucos com algum livro nas mãos geralmente estão lendo o último fenômeno editorial (atualmente John Green, antes os tons de cinza), algo religioso (padre Marcelo, bispo Macedo, Chico Xavier), romances psicografados (na maioria senhoras), calhamaços com alguma saga de fantasia ou, no caso dos engravatados, o mais recente lançamento com os cinco passos indispensáveis para se tornar rico. Então, talvez, se nos focarmos em literatura, ainda mais na produzida hoje por brasileiros, o número pode não estar tão distante da realidade. Êita… Abraços.
Só complementando: não quis dizer, pelo meu comentário anterior, que não considero John Green ou alguma saga de fantasia como não sendo literatura. Já quanto aos tons de cinza, bem, daí já não sei dizer. Abraço.
Oi, Sergio,
Tudo bem? Li seu livro de contos e acompanho seu blog, mas essa é a primeira vez que lhe escrevo. Estou começando uma carreira de escritor e fiquei intrigado com o que você chama de “instinto de internacionalidade”. Meu primeiro romance se passa em Roma e Assis, possui diversos personagens estrangeiros e não sei se isso é um sintoma do chamado “instinto de internacionalidade”. O Brasil é uma terra de imigrantes. Todos viemos de fora, com exceção dos índios. Até a Semana de Arte Moderna, nossas referências culturais eram lusitanas. Foi então que se tentou criar uma arte genuinamente brasileira. Acho que Macunaíma, do Mário de Andrade, é dos melhores exemplos do que esse movimento cultural produziu. Mais tarde, a literatura brasileira fez a transição do campo para a cidade, retratando o êxodo rural que caracterizou um período da nossa história. Ocorre que hoje vivemos num mundo globalizado. Nunca foi tão fácil sair do Brasil e conviver com estrangeiros. Acredito que a literatura brasileira iria retratar esse fato social mais cedo ou mais tarde e sinceramente não vejo isso como algo negativo. Se tiver curiosidade, posso lhe enviar de presente um exemplar do meu romance. Abraço.