Concordo com o crítico italiano Franco Moretti, autor do provocante A literatura vista de longe (Arquipélago Editorial, tradução de Anselmo Pessoa Neto, 160 páginas, R$ 34), um dos melhores lançamentos recentes na área, sobre o qual espero falar mais detidamente tão logo consiga digerir seus altos teores de novidade: o estudo de literatura tem muito a lucrar se absorver ferramentas e modelos das ciências exatas. (Relendo essa frase, me dou conta de que, poucos anos atrás, eu teria reagido com violência à idéia de Moretti, que agora acho brilhante. Mudaria o Natal ou mudei eu?)
Um exemplo simples de como uma abordagem quantitativa pode contribuir para a compreensão do fenômeno literário acaba de ser publicada no blog americano The Millions (dica do blog de livros do Guardian): o que começa como uma série de estatísticas – sobre a quantidade de livros estrangeiros laureados em sua língua de origem que foram traduzidos para o inglês – acaba por traçar um quadro curioso das cotações de diversos idiomas nas Bolsas de Valores Literários de Nova York e Londres. Nada que mereça uma tese de doutorado, é claro: estamos no terreno das curiosidades blogueiras. Mas se não valer um bom post vadio, não sei o que valerá.
O exercício é singelo. O The Millions pesquisou os livros vencedores dos principais prêmios literários de suas línguas, apenas premiozões da estatura de Goncourt e Rómulo Gallegos, entre 1995 e 2005. Em seguida, foi conferir quantos tinham ganhado tradução para o inglês, esse latim contemporâneo. É possível enxergar aí um certo ranço imperial, claro, se for essa nossa escolha – como se um autor só chegasse ao primeiro escalão depois de vertido para a língua de Oprah Winfrey. Mas também se pode ver o contrário, um exercício de humildade em que sobressai a cobrança por uma maior abertura do mercado de língua inglesa para o mundo.
De uma forma ou de outra, o mais interessante, como eu já dei a entender, são os números. Para surpresa de quem tem acompanhado sua – inegável – decadência literária, o francês mostrou mais uma vez que os grandes mitos demoram a morrer: os vencedores do Goncourt no período pesquisado foram os mais traduzidos para o inglês, atingindo a marca de 73% de “aproveitamento”.
O espanhol, em ótima fase, aparece em segundo lugar, com 50%, dando sustentação aos prognósticos de que logo ultrapassará o francês. Depois vêm o italiano (27%), o russo (9%) e o alemão (6%). O japonês fecha a lista, com 0%.
Alguém reparou na ausência do português? Pois é, isso também diz muito. Tanto sobre o desinteresse internacional por nossa literatura quanto sobre nossa própria inépcia. Digamos que o The Millions tivesse decidido, num arroubo de ousadia, incluir a língua de Paulo Coelho em sua pesquisa: que superprêmio ele tomaria como referência? O Camões, dado ao conjunto da obra, não serve. O Portugal Telecom ainda está verde. O Jabuti, além de um tanto desmoralizado, é só brasileiro.
Imagino o blogueiro gringo fechando o Google com impaciência: “Ih, melhor deixar esses caras pra lá. Vamos tentar o húngaro…”.
19 Comentários
Oi Sergio
Seria possível algumas vezes dares dicas de livros? Seguinte, gosto muito de ler, mas não é muito fácil comprar pois os preços nem sempre são acessíveis. Como a minha margem é muito estreita não posso me dar ao luxo de ficar experimentando até acertar. Claro que sempre tem os que se sabe que não vamos errar, mas gostaria de descobrir novos autores e livros que não me arrependa em ler. Tenho a indicação do autor Sándor Márai: DE Verdade. Conheces?
Espero não ter sido muito espaçosa. Tks, um abraço
Laila, fique de olho que “algumas vezes” eu dou dicas de livros, sim. Neste post mesmo tem uma recomendação que acho muito boa, o do crítico Franco Moretti. Quanto ao Márai: este que acabou de sair eu não li, mas é um ótimo autor. Um abraço.
Sandor Márai é húngaro. E como todo húngaro, um ótimo autor.
Márai é autor de um belíssimo livro, chamado “As Brasas” na tradução brasileira. É um grande escritor, daqueles que verdadeiramente merecem ser lidos. Aliás, esse autor húngaro, fato curioso para nós, baseou-se em Euclides da Cunha (sim, o autor d’Os Sertões) para redigir um livro ambientado em Canudos (não me recordo agora o nome do livro, que infelizmente não li ainda, mas sei, por leitura de comentários, que Euclides da Cunha é um dos personagens).
“As Brasas” é uma iguaria rara, obra de grande sensibilidade.
Sérgio, tenho pensado em outra coisa também. Imagine se o leitor estrangeiro entusiasmado com, por exemplo, Machado de Assis, resolvesse bancá-lo no exterior. Que edição crítica das obras completas iria levar para lá, para fazer seu trabalho? Temos ótimas obras do tipo de Joyce, Conan Doyle, etc. Mas, apesar da academia produzir textos críticos, teses e dissertações a torto e a direito, que autor daqui é publicado com sua obra reunida em um trabalho crítico adequado para ser apresentado lá fora?
Sim, Leandro, concordo que falta muito nesse campo. O Machado “quase completo” da Nova Aguilar tem fragilidades tanto na fixação do texto quanto na fortuna crítica. Consta que a editora lançará este ano uma versão aprimorada, vamos aguardar. Abs
O prêmio Camões deveria ser repensado, para se tornar anual. Quem o promove? Seria de interesse do mercado editorial brasileiro que empresas e o governo daqui pudessem participar mais ativamente dos bastidores da premiação. Ou, outra possbilidade, é criar um novo prêmio, numa parceria Brasil/Portugal, tipo um Booker para os países falantes do português.
Não há um prêmio cubano importante?
Shirlei: tem o Casa de las Américas.
Ricardo: o jovem Portugal Telecom, que ano passado passou a ser um prêmio da lusofonia, já parece muito bem embicado nesse caminho. Mas virar um Booker ou um Goncourt leva tempo.
Olá Sérgio
Gosto bastante de suas abordagens literárias. São contextualizadas e de fácil compreensão.
Sou Professora de Literatura e também estudo Literatura Africana. Então, gostaria que você desse umas dicas de livros que tratam deste tema.
Abração!
A professora Regina Dalcastagnè da UnB publicou em 2005 um estudo estatístico sobre o personagem na literatura brasileira contemporânea. Saiu na Revista de Literatura brasileira contemporânea número 26. Talvez você queira dar uma olhada, Sérgio.
Sempre vale repetir: As Brasas é um dos melhores livros que já li.
Sobre a ausência do português no “The Millions” (parece nome de programa do Silvio Santos, não?): acho que o português anda ausente na bolsa dos brasileiros também, entonces, se brasileiros não se lêem… (eu ia dizer não se entendem, mas desisti).
Suellen, obrigado pelas palavras gentis. Mas acho melhor fazermos o contrário: você, que estuda o assunto, nos dá dicas de livros sobre literatura africana, que tal?
Breno, vou procurar esse estudo, valeu.
Eric: é por aí mesmo. O primeiro desafio dos escritores brasileiros é o mercado interno, o resto vem depois.
Engraçado, me surpreende que ninguém tenha dito uma só palavra sobre o Moretti, nem contra nem a favor. Achei que ele estivesse repercutindo mais por aí.
Abraços.
oi sérgio…vida longa ao novo endereço do seu blog… parabens… e , conforme combinamos, fiz esclarecimentos e recomendações lá no meu blog … abs
Caro Ricardo, muito obrigado pelo post. Deixei um comentário lá. Abraços.
Oi Sérgio, interessante essa abordagem. Eu acho sim que números podem dizer muito para a cultura, a gente é que não costuma dar bola para eles… Mas o Português, coitado, não é o único que sofre. Tradução (nos dois sentidos) é importante (essencial?) para a saúde de qualquer cultura, o preocupante é a falta de diversidade… Falando em números, dar uma olhada no Index Translationum da Unesco (infelizmente não completamente confiável) também não é nada animador: http://portal.unesco.org/culture/en/ev.php-URL_ID=7810&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html
Abs!
Literatura x Ciência « Contraplatitude
O que leva alguém a dizer que escritores de determinado país são TODOS bons?
Deve ser provocação, né?
Ou a água deste tal país contém uma substância que inocula nos nativos o germe do bem-escrever… deve ser isso, né Tibor?
Olá Sérgio
Obrigada por responder minha mensagem. E conforme sua colocação, envio algumas dicas de livros acerca da literatura africana. Peço desculpas pela demora em responder. Para tanto, segue:
“Luuanda”-José Luandino Vieira”
“Angola e Moçambique”-Rita Chaves
“A Kinda e a Misanga”´Tania Macedo
Ps.: quem quiser trocar idéias sobre estudos, dicas de leituras; me escreva.