Nada a ver com saudosismo. Eu mal entrava na adolescência, e os livros que lia na época eram bem diferentes dos que vou citar aqui. Apenas aconteceu que, intrigado por uma coincidência flagrada casualmente, comecei a puxar um fio na estante e acabei com uma pilha de evidências de que a safra de 1975 foi gloriosa para a literatura brasileira – a última de nossas safras gloriosas, como se depois disso a terra tivesse secado, tornando as colheitas mais espaçadas.
Antes de tentar explicar a generosidade literária daquele tempo – e a relativa sovinice dos anos seguintes –, convém justificar a tese. Para tanto basta dizer que 75 trouxe à luz, de uma só vez, duas obras-primas espantosas e cabais: “Feliz ano novo”, de Rubem Fonseca, e “Lavoura arcaica”, de Raduan Nassar (eis a coincidência em que reparei por acaso). Só isso já seria histórico. Tem mais.
De saída, que tal juntar à pilha o “Zero” de Ignácio de Loyola Brandão? A qualidade é desigual, eu sei. Talvez o confuso “Zero” nem faça muito sentido lido fora da moldura de um regime autoritário, mas, censurado, converteu-se em livro-símbolo de um tempo. Ou seja: entre méritos literários e históricos, entre texto e contexto, temos um trio de marcar época. Aqui um mais rumoroso, ali um mais perene – de ambos os tipos se faz uma literatura.
Completam o quadro um punhado de livros recebidos com menos fanfarra, mas que, tomados em conjunto, valem por um atestado impressionante de vigor (na dúvida, é só comparar com as listas de finalistas do Jabuti nas últimas décadas): Caio Fernando Abreu lançou “O ovo apunhalado”, Sérgio Sant’Anna publicou “Confissões de Ralfo”, Roberto Drummond estreou com “A morte de D.J. em Paris”, Dalton Trevisan reafirmou sua maestria com “A faca no coração”. Todos de 1975.
(Aliás, encontro num prefácio de Caio à terceira edição revista de “O ovo…” a prova de que a exuberância daquele ano não passou despercebida na época: “Ele [o livro] foi publicado em 1975, ano marco daquela coisa confusa, gostosa e passageira que batizaram como boom da literatura brasileira”, escreve o autor de “Morangos mofados”, com cacófato e tudo. )
É coisa à beça, mas afrouxando um pouquinho os limites cronológicos ainda se pode acrescentar à safra três livros marcantes terminados em 1975, embora só fossem chegar ao público no ano seguinte: “Reflexos do baile”, de Antônio Callado, “Essa terra”, de Antônio Torres, e “A festa”, de Ivan Ângelo.
Antes que denunciem a trapaça de jogar 1976 no pacote, pergunto: por que os parâmetros deveriam ser intocáveis se o próprio critério cronológico é enganoso? “Zero”, por exemplo, foi concluído em 1969, e o fato de só ter sido publicado em 75 tem mais a ver com política do que com literatura: nenhuma editora quis comprar a briga enquanto a ditadura atravessava seu período mais truculento. Finalmente, a pequena Brasília/Rio topou a parada – apenas para ver o livro ser proibido pela censura no ano seguinte. Destino semelhante teve “Feliz ano novo”. O brilhante – e injustamente esquecido – “A festa” também tem uma história marcada pelo autoritarismo: Ivan Ângelo começou a escrevê-lo em 1963 e parou no ano seguinte, quando veio o golpe militar, de puro bode. Só em 74 se animou a retomá-lo.
O papel da política nessa história é marcante, e não só porque a ditadura decidia o que podia ser lido – e visto, e ouvido – no Brasil. O próprio clima de liberticídio dava um tom de urgência e combate a boa parte dos livros daquela safra. Alguns deles, como “Reflexos do baile” e “A festa”, tematizam diretamente o período. Só não vale concluir que 1975 é a prova de que a ditadura fazia bem à literatura brasileira, por lhe dar um inimigo contra o qual lutar ou qualquer coisa assim. O mesmo já foi dito da MPB. É um raciocínio torto.
Torto e auto-sabotador: se o país precisasse de um ditador de plantão para ter boa literatura, seria melhor nos contentarmos com Paulo Coelho. Prefiro pensar na safra de 75 como um mistério, um feliz ponto de convergência – e um desafio. Qualquer dia vamos ter outra dessas.
25 Comentários
Coincidentemente ou não, o ano que nasci. Por volta das dez e meia da manhã do dia dezoito de abril. Por falar em dia e mês, vendo uma notícia no jornal, dois dias atrás, mais ou menso me veio o seguinte na mente e vê se não mente, dia e mês no EUA é trocado, então hoje por exemplo fica, setembro(mês) 11(dia), que é 9/11, sem barra, 911, incrível número da emergência americana, telefone da polícia dele(a)s lá, nine one one. Se eu não for gênio, no mínimo esta visão foi genial. Beto
Quando se estuda literatura, no colégio, nota-se que os movimentos literários e artísticos estão muito ligados aos acontecimentos políticos e sociais do momento. A arte, de um modo geral, está muito ligada a esses acontecimentos pois é deles que partem as inspirações da alma. É interessante essa abordagem. O momento atual, parece de espera. Há algo para acontecer, para mudar; alguma coisa inacabada. Artistas sentem isso mais que qualquer um pois são muito sensíveis aos pequenos sinais, às vibrações imperceptíveis.
Interessante essa sua descoberta. Nunca tinha me detido a esse detalhe. Ao menos, não assim, restringindo-se a um ano. Talvez possamos encontrar algumas outras “boas safras” com um pouco mais de pesquisa.
Você não acredita que as condições políticas, econômicas, etc..de uma época possam influir nas artes do mesmo período e assim produzir “safras” de melhor ou pior qualidade?
Abrs,
É deste ano também um bom livro do piauiense Assis Brasil, “Os que bebem como cães”…
Acrescento mais uma obra à sua lista: Poema Sujo, de Ferreira Gullar, também de 1975.
Muito taxativo e pretensioso esse comentário. Eu ariscaria dizer que , desde o início da “abertura”, os temas é que ficaram mais amplos e livres e a diversidade e riqueza deles talvez não permitam, segundo a análise do autor desde comentário, um “concurso” entre o “melhor dos iguais” que até 75 (talvez) fosse permitido.
Acho extremamente válido esse resgate de cultura brasileira, que está esquecida. São raízes, e devem sempre ser evidenciadas. Se são bons, fantástivos ou péssimos, vai de gostos. Já vi gente gostar de cada coisa…
E “Lavoura Arcaica” foi a estréia de Raduan Nassar. Nunca mais tivemos um primeiro livro assim. Gosto de “Zero”, mas gosto mais de “Dentes ao Sol”.
“Avalovara”, de Osman Lins, me parece que é dessa época também. Pelo menos em reedição.
Acho que a lista nao é muito justa…
penso que o melhor ainda esta por vir .
e como disse o Balarotti Poema Sujo, de Ferreira Gullar, também de 1975. tem que entrar nessa!
Bravo, Luciano Balarotti: ‘Poema sujo’ é uma obra-prima e só reforça a tese – se não o citei é porque a lista, como se vê, ficou focada em ficção.
Quanto à sua pergunta, lao, é claro que acredito na influência de fatores políticos, econômicos e sociais sobre a arte. Só não acho que seja uma influência simples, mecânica.
Abraços.
Considerem outros fatores para a escassez de boas obras: outro contexto social, cultural e econômico. Cultura dominada pela mídia, com sobrecarga de livros escritos por jornalistas em troca da visibilidade que as editoras imploram. Editoras assediadas por milhares e milhares de aspirantes à carreira de escritores, tendo que usar critérios nem sempre defensáveis para escolher o que publicar.
O que nos parece do período militar é que ele gerou amizades indissolúveis. Toda a galera consagrada no mundo cultural partilhou prisões, tomou as mesmas porradas etc. Hoje não há amizades, nem ações entre amigos.
Todos concorrem. E o mérito profissional é um dado quase irrelevante nesse páreo.
UM CERTO TÉDIO – Interessante esta nota sobre 1975. O problema, para mim, é que nenhum destes livros ou autores tem lá grande significação num cômputo geral, exceção feita a dois títulos: o de Dalton Trevisan (que não é o melhor do autor, mas mantém sua média qualitativa) e a promessa repetida de “A Festa”, de Ivan Ângelo. [Já estou esperando as bordoadas dos admiradores de Raduan Nassar e Rubem Fonseca!] O caso de Ivan Ângelo é o mais interessante: tendo começado cerca de 20 anos antes, de maneira extremamente promissora, com a metade de um livro de contos (“Duas Faces”, em colaboração com Silviano Santiago), e se mantido em silêncio jornalístico por todo este intervalo, “A Festa” era uma brilhante “re-promessa”. Infelizmente, Ivan Ângelo, um dos escritores mais talentosos de sua geração, parece ter voltado ao silêncio de assinar apenas uma crônica de televisão no “Jornal da Tarde”. A literatura brasileira, desde 1960, tem andado numa pior: depois de prosadores que preencheram as duas décadas anteriores, – como Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Fernando Sabino (o de “O Encontro Marcado”), Ariano Suassuna, José Cândido de Carvalho, Breno Accioly, O. G. Rego de Carvalho, J. J. Veiga, Murilo Rubião, Dalton Trevisan, etc. – os nomes citados para glória de 1975 não deixam de causar certo tédio…
NOTA – “Zero”, de Ignácio de Looyola Brandão, foi publicado em 1974, na Itália. A edição da Brasília , de 1975, indica o copyright de Feltrinelli.
Isso mesmo, Curiango. Se a nota fosse sobre a safra estrangeira publicada na Itália, o ano de ‘Zero’ seria 1974.
Grande ano… Mas, há um fator… havia leitores, se não em número gigantesco, muito mais do que hoje. Hoje há mais escritores do que leitores…
A Ficção brasileira está uma merda. Livrinhos, livrinhos, livrecos, escritorzinhos, projetos de escritores….E a critica faz de conta que está tudo bem.
“A festa”: injustamente esquecido, concordo.
Ivan Ângelo arquitetou uma obra que incita os leitores a saírem do apático estado de espectadores. É necessária a participação, o envolvimento para montar as peças do quebra-cabeça. O que vai total na contra mão da prolífica literatura que serve à indústria cultural.
Sem contar o detalhado retrato de uma época. Sensacional.
Algo está no ar… prenúncio de que muitas coisas boas vão acontecer. Tudo já começou; o Chico voltou a cantar, ótima notícia.
Ok. Lembremos que 1975 já é um ano diferente, em 74 entramos no governo Geisel, havia uma esperança no ar de que que o bode – que na música nos deu discos fantásticos como Val a todo vapor e Clube da Esquina e no jornalismo nos deu O Pasquim – começava a passar. De certa forma a literatura explode o que já aconteceu – no caso a ebulição dos anos 50 e 60 e seu desfecho. O que há para se contar desses últimos 31 anos? São apenas observações imediatas, que precisam ser melhor refletidas.
Desculpe: Gal a Todo Vapor…
Na mesma época, a música no Brasil também era espetacular. Raul, Jorge Ben, Tim Maia. Infelizmente, nessa aridez dos nossos tempos, não temos muito o que dizer.
O que está faltando é a juventude sadia, livre, sonhadora, corajosa. Os jovens estão calados ou com medo. Alguns desperdiçam sua juventude, com doses cavalares de violência e devassidão. Juntam-se em bandos para abusar do fraco ou achar a coragem, numa atitude covarde. Pobre juventude impotente, apática, desinteressante, amedrontada. Ontem, juntaram-se em cinco para bater em um, até a morte, numa covardia insuportável. Hoje, lotaram um carro, bêbados e se arrebentaram, morrendo todos. Onde está a juventude do DCE, dos Diretórios Acadêmicos, das discussões politizadas, ardorosas, patrióticas. A juventude de ouro envelheceu e se esqueceu de colocar outra, em seu lugar. Mas, alguma coisa está acontecendo: jovens estão sendo forjados, no momento, pois o Brasil mostrou a sua cara, deixou o faz-de-conta. O tempo é propício e a esperança é a última que morre.
Gente, parece que o papo mixou, mas eu gostaria de registrar: 1975 foi o ano do lançamento, pela Rocco, de um grande livro de contos, “As pompas do mundo”, de Otto Lara Resende. E por aí também — 75, 76 — que chegou o estupendo romance “Armadilha para Lamartine”, de Carlos Sussekind.
“juventude sadia, livre, sonhadora, corajosa”???? Acho que estou lendo a páginas de cartas da Marie Clair!
Obrigado pela lembrança do Otto, Eduardo. “Armadilha para Lamartine” é de 76, mas está ali por perto. E 75 tem outro livro curioso que ninguém aqui lembrou: “Catatau”, do Paulo Leminski. A tese soa melhor a cada dia. Um abraço.
Outro bom livro lançado em 75. Leão-de-chácara de João Antônio. Um grande retratista dos marginalizados.