A autora nunca me interessou terrivelmente, mas comecei a ler seu diário de juventude com uma vaga curiosidade e fui até o fim. São cheias de reflexões como essas aí embaixo – cruas, nervosas, às vezes meio adolescentes, mas transpirando sinceridade – as anotações que a escritora e pensadora americana Susan Sontag (1933-2004) manteve de 1958 a 1966, basicamente entre Paris e Nova York, enquanto lutava para se inventar como escritora.
Como atração colateral, vale a pena fingir por um momento que estamos lendo os posts de uma aspirante a escritora do século XXI: o estilo blogueiro já estava maduro há meio século, só faltava o meio.
Uma tradução do diário de Susan Sontag acaba de ser publicada pela revista “Granta” em espanhol – acesso livre, em pdf, aqui.
31 de dezembro de 1958:
Por que é importante escrever? Sobretudo por egoísmo, suponho. Porque quero ser esse personagem, uma escritora, e não porque haja algo que deva dizer. Mas por que não também por isso? Com um pouco de construção do ego – como mostra o fait accompli deste diário – emergirei lá na frente com a confiança de que eu (eu) tenho algo a dizer, algo que deve ser dito.
19 de novembro de 1959:
O orgasmo concentra. Desejo escrever. A chegada do orgasmo não é a salvação; mais do que isso, é o nascimento do meu ego. Não posso escrever até encontrá-lo. A única escritora que eu poderia ser é uma que se expõe a si mesma…
24 de dezembro de 1959:
Meu desejo de escrever está relacionado com minha homossexualidade. Preciso dessa identidade como arma, para enfrentar a arma com a qual a sociedade me ameaça. Não justifica minha homossexualidade. Mas me daria – creio – uma licença. Começo a me dar conta de quanto remorso me causa ser lésbica.
Sem data, final de 1966 (três anos depois de lançar seu primeiro romance, “O benfeitor”, publicado aqui pela L&PM):
Joe (Chaikin) me pergunta esta noite o que sinto quando descubro que o que estou escrevendo, transcorridas três quartas partes, digamos, é medíocre, inferior. Respondo-lhe que me sinto bem e que luto até o fim. Me desfaço da mediocridade que há em mim. (A imagem excrementícia da minha escrita.) Ali está. Quero me livrar dela. Não posso negá-la por uma ação da vontade. (Ou posso?) Só posso lhe conceder voz, “expulsá-la”. Aí então posso fazer outra coisa. Pelo menos sei que não terei que fazer aquilo de novo.
35 Comentários
Taí, Sérgio. Vc refletiu sobre o assunto, e publicou um belo exemplo de resposta (literatura x vida). Ou então “o universo foi generoso contigo.” Te respondeu na lata. Vou dar uma olhada nesses diários. No fundo no fundo, gente é tudo igual, né mesmo? Mas uns mergulham mais fundo que outros. Quase se afogam.
Gente é tudo igual? Que tremenda idiotice.
Noga, fico contente que você tenha gostado, mas continuo achando essa conversa de “literatura perto (ou longe) da vida” meio equivocada. Literatura pra mim pode ser boa de ler ou ilegível, forte ou fraca, memorável ou esquecível, funcionar ou não. Mas os caminhos para chegar lá – ou não chegar – são os mesmos. E são infinitos.
Cassandra Rios nunca teve diário. Achava esse negócio coisa de mulherzinha.
abs,
ma
Sérgio,
Sontag tem muito, mas muito mais valor como pensadora cultural do que romancista…
Essas pensatas ai provam isso, mais uma vez…
Mas eu concordo, Sérgio. Discordo é da obrigatoriedade do artifício, do discurso crítico, do autoritarismo lógico da mente bloqueando a intuição. Igualdade é idiotice, certo. A ínsula cerebral e outras amígdalas mais que o digam, Paulo. Tudo o mais é ilusão, puro verniz erudito.
Tudo bem, Noga. Quando eu falo em artifício, não quero dizer artificial ou especialmente artificioso. Tendo o escritor consciência disso ou não, literatura é sempre artifício. Agora, quando o “autoritarismo lógico bloqueia a intuição”, aí realmente não pode dar boa coisa. Mas esse papo está meio maluco, vamos em frente.
Sergio,
Leio no Ivan Lessa que você faz design de cadeiras! É verdade?
Estou pasmo!
Não, Feliciano. O SR que desenha cadeiras (e poltronas e casas) é apenas um xará, bem mais velho e mais famoso. Meu amigo Ivan está cansado de saber disso, mas gosta de embaralhar as coisas. O design aqui é só de texto mesmo – não está na moda dizer que tudo é design? Um abraço.
Gostei particularmente do último fragmento do diário de Ms. Sontag.
É verdade, o Ivan Lessa é um embaralhador da fuzarca.
A Folha publicou vários trechos desses diários uns poucos meses atrás, não?
Algo que me vem à mente é o quão embaraçoso é ler essas coisas. Acho que eu ficaria tremendamente irritado lá no paraíso se descobrisse que meus cadernos, diários e anotações íntimas estivessem à disposição do público. Não, eu não acredito que a obra é do público – ao menos a obra não-lançada. Privacidade é fundamental.
Jona,
Acho que também não iria ficar nada feliz de saber que escritos pessoais estivessem sendo, digamos assim, devassados por quem não lhes foram destinados… mas imagine só, imagine que coisas que não foram lançadas em vida por autores nos fossem negadas?…não teríamos Kafka…
Provavelmene o nobre K iria destar assim como qualquer ser humano normal, mas veja que ótimos livros ele nos deixou…
Invasão de privacidade depois da morte parece que vale né mesmo? Ta morto, então não vai se importar?
Se bem que sempre desconfiei de quem tem diários e anotações “secretas”… sempre achei que a pessoa queria é mais que as ditas sejam “achadas” e divulgadas…
Kakfa pediu ao melhor amigo para queimar seus escritos… será que isso não foi um pedido de “Não faça isso”? Acho que sim…
P.S.: Kafka sempre dá um jeitinho de aparecer vez por outra por aqui né não?
desculpe, é Jonas…
A única coisa que deveria mesmo interessar é o livro do autor, aquilo que ele trabalhou até o ponto definitivo ou quase definitivo. Os Diários de Kafka são chatos e repetitivos, suas cartas são enfadonhas e desinteressantes, e é apenas mesmo nos seus romances que o interesse literário reside. Acho, inclusive, que um dos problemas na divulgação da boa literatura hoje nasce no fato de que bons escritores estão muito ocupados para fazerem uma ‘social’ porque quando não estão escrevendo estão descansando do esforço da escrita, enquanto nos bares e eventos há muitos ‘escritores’ falando de literatura quando ficam dias, semanas, meses até sem pegar o lápis sequer uma vez. Uma maneira de aparecer então seria trasformar sua vida num evento, ‘eu sou meu próprio livro’, e então as resenhas sobre os livros se tornam reportagens sobre a personagem que escreveu esse livro e como esse livro reflete essa personagem. Um Diário de um grande escritor é apenas um aperitivo dispensável, mas não deveria adicionar muito à sua obra. Sou, por exemplo, apaixonado pela Virginia Woolf e quando fui ler seus Diários em busca da gênese de ‘Mrs Dalloway’ encontrei apenas tédio. É uma chatice sem fim esse rame-rame sobre as dificuldade de ser escritor até porque ser escritor é simples, basta papel e lápis, é uma atividade privada, até mesmo no cárcere Graciliano só precisava de lápis e papel; e publicar, o que para uns é rápido e para outros demorado, é outra coisa, não é literatura. A publicação do livro chega apenas depois que a literatura acaba. Então qual é o interesse literário em saber das dificuldades da publicação de um livro, de sua recepção, etc, quando isso ocorre justamente depois da literatura, do processo privado, ter acabado? Pelo menos é a minha maneira de encarar as coisas…
Vinicius,
Caro amigo cometarista, concordo com você, também não gosto dessa história de diários de grandes autores… nem mesmo os de Kafka, prefiro os livros mesmo… mas deve haver algo de positivo niso tudo…
Assim como você, me apaixonei por Virginia Woolf, mas aprendi uma lição muito grande com essas histórias de diários, devo ficar longe deles… e bem próximo dos livros, acho que o que é escrito é mais interessante que o escritos, estou sendo idiossincrático ao extremo…
lembro-me bem de um post do Sérgio que falava do lançamento do diário de um amigo de Borges sobre Borges… algo com mais de 1000 páginas se não me engano… há quem gosto caro Vinicius, mas eu particularmente não gostei não… acho que Borges, a pessoa deve ser bem chato, interessante deve ser a obra, não o autor…
Abraços.
digo, nisso tudo
Deus nos proteja das generalizações desatinadas… Diários ou cartas de escritores podem realmente ser chatos e sem-graça, mas isso não é lei. Basta ler as cartas do Tchekhov, ou o diário argentino do Gombrowicz, ou o maravilhoso “Ofício de viver” do Pavese pra ter perfeita noção disso.
Lembrei das cartas do Joyce para a sua esposa, cheias de trechos sexuais e até meio grotescos. Ele morreu, então não vai se importar? Pô, é uma tremenda falta de educação mexer nos detalhes de sexo anal entre Joyce e Nora.
Mas como disse o Roberto, há exceções sim. As cartas de Tchekhov são sensacionais. Ainda não li os diários de Kafka.
A contar pelo jeito que Vinicus articula suas palavras em resenhas pessimamente escritas, deve precisar de muito descanso, papel higiênico, bom-ar e hipoglôs depois do “esforço da escrita”.
Jonas,
acho que o autor iria se importar sim com o revirar de sua anotações intimas… como disse, qualquer um iria… mas fico me perguntando por que diabos alguém faz esse tipo de coisa? Ainda mais sabendo que pode parar nas mãos de um mal-intencionado…
Não acho que, via de regra, todo diário ou coletânea de cartas seja chato, só não gosto dessas coisas… prefiro comprar um livro, por assim dizer, normal… é apenas uma questão de gosto…
Abraços…
as caixas de comentário deste blog são o acontecimento mais notável da vida literária brasileira nesta década.
Palhares, você é sempre tão amável… Obrigado pela atenção que me dedica.
Pra quem gosta do gênero, como eu, recomendo os diários e cartas de Rilke. Suas observações sobre escultura, literatura e pintura são das mais finas que já li, grande parte delas escritas quando o poeta tinha apenas 22 anos. Assombro!
Comentário 1 (uma citação): “Seria melhor tomar nota dos acontecimentos dia por dia. Ter um diário para nele ver tudo claro.” (Jean-Paul Sartre; A Náusea.)
Comentário 2: O assunto é bastante interessante e dá pano para muita manga. As cartas de Kafka (olha ele aí de novo!) podem ser chatas, mas a análise de Piglia dessas cartas em “O último leitor” são bem esclarecedoras em relação à tênue linha que separa o “literário” do “diário”. Mesmo no ato escrever um diário, o escritor não deixa de ser escritor (e “leitor” de uma realidade já vivida). Como tb lembra Piglia: “Não existe nada simultanamente mais real e mais ilusório do que o ato de ler”, e o de escrever?
Ah, pelo dia de hoje, Viva Cortázar!
Susan Sontag é uma droga sem tamanho!
Ahahaha….
Prefiro o “Diário da Corte”
:o)
Vamos imaginar uma situação extraordinária. Sérgio Rodrigues, ícone da literatura brasileira contemporânea. Vários Jabutis, duas indicações ao Nobel de Literatura. Lido em mais de 50 paises, milhões de livros vendidos. E um diário guardado numa gaveta do criado-mudo (essa peça de mobília ainda existe?), com minúcias corriqueiras, reflexões e uma ou outra revelação insuspeita. Não haveria de saber que uma vez morto esse diário seria conspurcado? Claro que sim. A publicação desse diário seria um golpe de mestre, uma obra póstuma previamente elaborada. Sergio Rodrigues estaria rindo à socapa lá onde estivesse.
Assim, não creio muito em intimidade invadida, embora não descarte inteiramente a eventualidade. Como a lucubração acima é improvável, mas não totalmente impossível, que tal, Sérgio, começar um diário?
Até hoje, só há um único diário digno de leitura, que poucos conhecem, embora seja ele um dos clássicos da língua inglesa: o Diário de Samuel Pepys. Quem o leu não mais consegue nutrir interesse por sensaborias escritas em tom confessional por indíviduos pretensiosos.
Pretensioso, Rafael, com todo respeito, é o seu comentário. Então quer dizer que “só há um único diário digno de leitura”, e que além de tudo é algo que “poucos conhecem”? Uau. Agradeço a lição.
Os diários de Josué Montello são interessantes.
Eu li na Folha. Conheço nada da escritura de Sontag. Mas o ativismo dela, assim como o da atriz Vanessa Redgrave, foi admirável.
Quando li os trechos do diário tb fiquei decepcionada. Depois pensei que poderia ter sido a escolha do resenhista.
Depois lembrei que vida de autor não me interessa. Só os trechos que se referem à sua obra.
É uma vida como a de qualquer outro. Concordo com o Vinícius.
É até perigoso conhecer um autor que a gente admira.
Outra via difícil é conhecer a pessoa e depois a obra. Fica complicado, ao menos para mim, diferenciar.
Tenho amigos do meio teatral.
Sinto a mesma dificuldade em avaliar com isenção a atuação.
Minha melhor amiga é atriz e é problemático para mim. Confesso que não gosto de ir às estréias.
O mesmo com os artistas plásticos. Ir à vernissage de amigo é um problemão. Gostar da obra e conhecer o cara é outro.
Acho melhor mudar de turma e procurar economistas, bancários, escanfandristas … gente que fica doida para a hora da saída do batente e a última coisa que querem é falar sobre os seus serviços.
O problema que só dá para vê-los no final de semana ou feriados.
Tem o Diário de Anne Frank. Li quando adolescente e até hoje me lembro e o livro se perdeu.
Acho obrigatório para adolescente.