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O caso dos escritores Jerominho

05/03/2008

O que mais nos deve inquietar no chamado “escândalo dos escritores Jerominho” não é saber que eles – todos os sete – se sujeitaram a este triste papel, assinar seus nomes numa literatura que, se tem um autor, esse autor só pode ser o falecido Jerônimo Mayrink.

Como se sabe, os escritores Jerominho, cujos nomes a recente notoriedade do caso me dispensa de declinar, compraram – por dez mil dólares a unidade – um produto anunciado aos sussurros no submundo literário como espetacular, uma espécie de pedra filosofal dos escritores. A coisa cheirava a picaretagem de longe, só que, surpreendentemente, funcionou: até o escândalo estourar, todos os clientes de Jerônimo Mayrink eram vistos como autores sérios, entrevistados por jornais e TVs, fartamente lidos – isto é, lidos no clubinho dos leitores de ficção nacional, uma turma que poderia fazer assembléia numa Kombi, mas essa é outra história.

Batizado de MUSA (Mayrink’s Ultimate Simulator of Authorship), o programa podia não ser barato, mas mostrou-se genial. Essa máquina de escrever ficção usa algoritmos para “alterar” a prosa de autores consagrados, embaralhar frases, trocar palavras-chave, fundir dois ou mais textos, enfim, promover uma remixagem geral. “É mais ou menos como preparar um carro de passeio para torná-lo uma máquina de corrida perfeita”, disse Jerominho na única entrevista que concedeu, dois dias antes de aparecer enforcado na garagem de sua casa, em Jacarepaguá.

Não me perguntem como uma engenhoca dessas pode funcionar. Funciona. Das mil e tantas páginas que o MUSA produz a partir de coordenadas simples fornecidas pelo “autor”, que também é responsável por escolher os textos que servirão de matéria-prima, um clique final comanda a destilação de cento e oitenta, duzentas paginetas de uma prosa em que jamais ocorreria a ninguém – como não ocorreu mesmo, até Jerominho tomar um porre e falar demais numa festa – vislumbrar a menor relação com o livro ou livros originais.

Não fica nisso: em seus piores momentos, a ciberprosa assim produzida é perfeitamente decente, e aqui e ali exibe felicíssimos, memoráveis pontos altos. Deve-se reconhecer que isso dá e sobra para tornar a literatura Jerominho melhor que a maior parte da literatura-literatura lançada entre nós nos últimos tempos.

E finalmente aí está, como eu ia dizendo, o que mais nos deve inquietar no caso Jerominho: mais que a falsidade comprovada de meia dúzia de celebridades “literárias”, a conspícua suspeita de falsidade que paira desde então sobre a própria literatura.

34 Comentários

  • Tio Levi 05/03/2008em08:40

    Isso é plágio de um conto do Primo Levi.

  • Sérgio Rodrigues 05/03/2008em09:11

    Tio (ou devo chamá-lo de Carlos?): nunca ouvi falar de conto nenhum de Primo Levi, nem sobre escritores trapaceiros, nem sobre carrascos nazistas. Você está desafiado (glória de qualquer poltrão anônimo da internet, eu sei, deve ser seu dia de sorte) a apresentar título e edição e discorrer em poucas linhas de forma convincente sobre as eventuais semelhanças entre o texto de Levi e o meu. Feito isso, restará apenas descartar a tese da coincidência, do Zeitgeist etc., e provar o crime (plágio é crime, caso você não saiba). Se você não fizer nada disso, como não fará, serei obrigado a tratá-lo como um pobre palhaço virtual, tentando, sem exatamente conseguir, ter piedade de sua alma. Estou aguardando.

  • Klaus 05/03/2008em10:29

    Sensacional, Sergio. Muito bom mesmo! Acho muito interessante como vai conseguindo aprofundar (rasgando, diga-se de passagem) os teus temas ‘preferidos’ com uma estética fascinante. Gostei bastante.

  • Tio Levi 05/03/2008em10:49

    O conto é “Il versificatore elettronico”, do livro Storie Naturali. Plágio foi brincadeira, hehe. Não leve tudo a sério demais.

  • Anderson 05/03/2008em11:44

    Pensei exatamente no mesmo conto quando li o texto. Saiu em português naquela coletânea de contos de Levi que a Companhia das Letras lançou. A acusação de plágio, ainda que de brincadeira, é leviana, já que os dois contos têm uma trama, e apenas uma trama, parecida. A comparação também é injusta porque, partindo do mesmo pressuposto, Levi faz muito, mas muito melhor. Dê uma olhada lá Sérgio!

  • Matheus Vinhal 05/03/2008em11:48

    Sobre invenções mais tradicionais, Sérgio, leia este post (meu): http://vinhal.blogspot.com/2008/03/pessoa-borges-e-internet.html

  • Uma 05/03/2008em13:00

    Gostei muito, Sergio. bjs

  • Guilherme 05/03/2008em13:22

    Esta máquina me lembrou uma outra, do livro do Piglia, A cidade ausente.

  • Tibor Moricz 05/03/2008em13:34

    O primeiro texto do Sérgio é ótimo, mas o segundo não fica atrás. Esse em que chama o distinto Carlos de palhaço virtual… demais! Prosa de primeira.

  • Tio Levi 05/03/2008em13:39

    Bem, eu penso exatamente o que o Anderson falou: não é plágio, inclusive porque o do Levi é bom.
    E quem é Carlos?

  • kurtz 05/03/2008em14:09

    Que chilique, Sérgio!

  • Eric Novello 05/03/2008em14:36

    E viva a tragédia grega… (ou o viva iria para as pinturas nas cavernas, o teatro de sombras…)

  • joao gomes 05/03/2008em14:41

    Esse sobrescrito lembra o que já foi discutido, (pelo menos de certa prisma) oque já foi discutido quando falou-se sobre o J.T. Leroy. Mas, agora tem outro escandalo mais novo.

    “O livro “Love and consequences”, escrito por Margaret B. Jones, foi lançado na semana passada e se apresentou como o testemunho vivo de uma jovem que sobreviveu em um bairro duro de L.A.

    http://g1.globo.com/Noticias/PopArte/0,,MUL337734-7084,00-DESCOBERTO+MAIS+UM+CASO+DE+FALSA+AUTOBIOGRAFIA+NOS+EUA.html

    Em 1996 Alan Sokal, físico apresentou um texto falso a uma revista da Columbia University. O Texto foi aceito e publicado. Depois gerou celeuma mundial. Depois gerou o livro: “Imposturas intelectuais”.

    Hoje existe os geradores de textos na rede. Não sei se existe algum que dê para escrever alguma prosa, mas do gênero poético já é possivel, sobretudo se se considerar os estilos modernos…

    A Matrix está em franco desenvolvimento.
    Marte nos espera.

  • El Torero 05/03/2008em16:45

    Assunto fora do tópico, mas vá lá…Caro Sérgio, e a entrevista de Marcos Bagno (que como leigo neste assunto, até então nem sabia que existia) na Caros Amigos!? Que que achou? Muita coisa de que li lá, batia com oque tu pensa sobre nossa língua, certo?…comentei com alguns educadores amigos meus, passei o endereço do teu blog pra eles; mais alguns leitores pra ti. Abraço.

  • chico 06/03/2008em01:13

    No El Traductor, o Pablo de Santis cita uma maquina parecida pra fazer traducoes e recriar narrativas. Mas argumentar que isso eh pragio foi Levi ano, mesmo.

  • Mr. WRITER 06/03/2008em01:22

    joao gomes, pensei no mesmo caso que você: J.T Leroy…

    Ótimo texto Sérgio, os últimos posts do Sobrescritos foram um sequência e tanto desse humor irônico, sarcástico e bem colocado que sempre transparece em seus textos.

  • Pablo 06/03/2008em09:07

    Mr. WRITER,

    Concordo contigo. E mais: acho que o que houve lá em cima foi uma comparação não muito feliz, uma vez que são coisas bem heterogêneas. Não sei se o Sérgio concorda, mas digamos que o “espaço-tempo” de um blog seja algo muito diferente daquele que encontramos numa obra que folheamos com as mãos: uma outra economia, portanto. E olha que o Sérgio sempre explora isso com a tremenda maestria que caracteriza a sua prosa. É sempre um presente que, semanalmente, ele nos oferece. Por fim, e se me for permitido aqui uma superinterpretação, achei curioso o nome dado à engenhoca: MUSA. Nada sintomático, não fosse o despertar de tanta memória depois disso.

    Abraço a todos

  • Ernani Ssó 06/03/2008em11:39

    Sérgio, gostei do conto. Me pareceu o melhor dessa série. Quanto à idéia, está no ar, com os aviões de carreira, desde sempre. No romance A Penúltima Verdade, de Philip K. Dick, há uma máquina de escrever. Datilografam-se duas ou três palavras e a máquina, na base de associações lógicas, escreve a história ou o discurso sozinha. Uma espécie de deputado baiano automático.

  • Será 06/03/2008em12:26

    Poque o Sérgio não respondeu mais??

  • joao gomes 06/03/2008em15:05
  • Sérgio Rodrigues 06/03/2008em18:47

    Será: porque ando cheio de trabalho e longe da internet. No mais, sendo isso aqui uma tribuna livre, depois daquela ridícula Levi-andade (boa, Chico) não houve nada que exigisse resposta imediata.

    El Torero, não li a entrevista do Bagno, mas ele é um lingüista sério. O único senão é que acaba fazendo inimigos desnecessariamente, a meu ver, com seu estilo incendiário.

    Vinhal, gostei do seu post, muito divertido. E gostei mais ainda de ver lá um sujeito que ainda não apareceu nesta conversa mas que é, ele sim, a eminência parda deste meu conto: Borges, claro. Os outros autores citados eu já anotei.

    Ernani, obrigado. Bom ver você quebrando o silêncio e comentando aqui.

    Abraços a todos.

  • Mr. WRITER 07/03/2008em16:19

    Sérgio,
    vivo lhe pertubando hora ou outra pelo livro do “A palavra é”, mas agora me ocorreu pertubá-lo tabém por um livro do “Sobrescritos”…
    Seria legal e a clientela do blog adoraria, tenho certeza.

    Abraços…

    P.S.: Vou pertubar no próximo “Sobrescritos”

  • Chico 07/03/2008em17:21

    Sergio, voce eh um preguicoso!! Esse conto eh um dos teu melhores. Logo essa estoria que tem enredo para uma pequena novela ( a relacao do Jeronimo com seus sectos literarios, as razoes do suicidio, o seu casamento rompido, suas crises de depressao de meia idade, as formas de funcionamento da MUSA desenvolvida no MIT, as questoes da angustia da influencia, as correspondecias do Jeronimo com Harold Bloom – desde que abandonou o doutorado em Letas na New York University rompendo com Bloom, seu orientador – , seu silopsismo, o segredo da falta de tres dedos no pe esquerdo…. enfim tantos detalhes….) voce a deixa pela metade!!!

    Voce esta brincando com teus leitores.

  • El Torero 07/03/2008em17:56

    Havia me lembrado de Budapeste, que peguei para reler depois deste Sobrescrito…

  • Sérgio Rodrigues 07/03/2008em18:00

    Pode ser, Chico. Mas nessa preguiça eu estou em boa companhia, o ceguinho que citei aí em cima.

  • Chico 07/03/2008em18:15

    Eu sei, eu sei. Eu estava bincando, meu caro. Tambem adoro o B. Suárez Lynch!

  • Chico 07/03/2008em18:15

    Eu sei, eu sei. Eu estava bincando, meu caro. Tambem adoro o B. Suárez Lynch!

  • Cezar Santos 07/03/2008em18:16

    Outro textinho porreta, Sérgio…
    A propósito, vc se sai muito bem em textos nessa medida, e isso é uma tremenda qualidade, porque escrever boa ficção em tal concentração não é para quem acha que sabe, tem de saber mesmo.
    Parabéns!

  • Sérgio Rodrigues 07/03/2008em18:31

    Valeu, Cezar.

    E Chico, entendi a brincadeira. O pior é que talvez – e agora não estou brincando – tenha mesmo um elemento de preguiça, ou cansaço, ou tédio, nesse recurso que o Borges consagrou, imaginar um livro e escrever sobre ele em vez de escrever o próprio livro, não acha?

  • Chico 07/03/2008em19:57

    Olha bicho, acho que isso eh parte do processo de criacao. Eh verdade que esse tema meio que atravessa teus contos – pelos menos os que voce posta aqui. Infelizemente, nao consegui ler os teus textos publicados ainda, pois aqui em Vanuatu a literatura tarda uns tres ou quatro anos a chegar. Mas te digo uma coisa, pra escrever do jeito que voce escreve, sem as perifrases, tem que ter uma coisa que nenhum academico consegue ter ou entender… mumunha – ou seja, a capacidade de exprimir situacoes sem circuloquio, sem maneirimos. Eu acho que voce tem isso.

    O Borges criou o Menard e involuntariamente os criticos os tornaram escravos um do outro. Mas acho que o Borges ia muito alem disso ao conjugar o conto policial – que os literatos torcem o nariz, sem saber que estes autores foram os ultimos a saberem narrar uma estoria como os do sec. XIX – com a erudicao de nefelibata.

    Mas pra resumir, tem uns caras que ja escreveram ou andam escrevendo por ai que sao mestres dessa narrativa curta… Monterroso, Max Alb… Evandro Affonso Ferreira… mas nem todos conseguem.. o Noll tentou e nao ficou bom.

    Esse teu conto, meu camarada – desculpe a brincadeira ai de cima – caminha nessa direcao. Todos os elementos de uma novela em poucas palavras. Seco, rapido e profundo, como as melhores facadas!

  • Sérgio Rodrigues 07/03/2008em20:28

    Obrigado, Chico, mas não é só o Menard. Boa parte dos contos de Borges são novelas ou romances desidratados. Quando falo da tese aparentemente ingênua da preguiça ou do cansaço, não me refiro à preguiça ou ao cansaço do autor, mas da própria cultura. Para que se dar ao trabalho de batucar um romance inteiro se basta indicar seus contornos para que todo mundo, macaco velho, entenda? Depois alguém batizou isso de pós-modernismo. E claro que o que pode ser genial também pode ser – e freqüentemente é – uma picaretagem. Abraço.

  • Tomás 09/03/2008em13:03

    E quando esses contos todos vão ser reunidos no antiquando formato códex e postos à disposição em alguma livraria?

  • Sérgio Rodrigues 10/03/2008em11:49

    Tomás (e Mr Writer, o primeiro a me cobrar isso), obrigado pelo interesse no livro, mas é cedo. “Sobrescritos” ainda é uma série jovem, vamos ver como evolui. Abraços.

  • Mr. WRITER 10/03/2008em14:51

    Sérigo,
    Ok, mas já estou no aguardo…
    Abraços.