O que mais nos deve inquietar no chamado “escândalo dos escritores Jerominho” não é saber que eles – todos os sete – se sujeitaram a este triste papel, assinar seus nomes numa literatura que, se tem um autor, esse autor só pode ser o falecido Jerônimo Mayrink.
Como se sabe, os escritores Jerominho, cujos nomes a recente notoriedade do caso me dispensa de declinar, compraram – por dez mil dólares a unidade – um produto anunciado aos sussurros no submundo literário como espetacular, uma espécie de pedra filosofal dos escritores. A coisa cheirava a picaretagem de longe, só que, surpreendentemente, funcionou: até o escândalo estourar, todos os clientes de Jerônimo Mayrink eram vistos como autores sérios, entrevistados por jornais e TVs, fartamente lidos – isto é, lidos no clubinho dos leitores de ficção nacional, uma turma que poderia fazer assembléia numa Kombi, mas essa é outra história.
Batizado de MUSA (Mayrink’s Ultimate Simulator of Authorship), o programa podia não ser barato, mas mostrou-se genial. Essa máquina de escrever ficção usa algoritmos para “alterar” a prosa de autores consagrados, embaralhar frases, trocar palavras-chave, fundir dois ou mais textos, enfim, promover uma remixagem geral. “É mais ou menos como preparar um carro de passeio para torná-lo uma máquina de corrida perfeita”, disse Jerominho na única entrevista que concedeu, dois dias antes de aparecer enforcado na garagem de sua casa, em Jacarepaguá.
Não me perguntem como uma engenhoca dessas pode funcionar. Funciona. Das mil e tantas páginas que o MUSA produz a partir de coordenadas simples fornecidas pelo “autor”, que também é responsável por escolher os textos que servirão de matéria-prima, um clique final comanda a destilação de cento e oitenta, duzentas paginetas de uma prosa em que jamais ocorreria a ninguém – como não ocorreu mesmo, até Jerominho tomar um porre e falar demais numa festa – vislumbrar a menor relação com o livro ou livros originais.
Não fica nisso: em seus piores momentos, a ciberprosa assim produzida é perfeitamente decente, e aqui e ali exibe felicíssimos, memoráveis pontos altos. Deve-se reconhecer que isso dá e sobra para tornar a literatura Jerominho melhor que a maior parte da literatura-literatura lançada entre nós nos últimos tempos.
E finalmente aí está, como eu ia dizendo, o que mais nos deve inquietar no caso Jerominho: mais que a falsidade comprovada de meia dúzia de celebridades “literárias”, a conspícua suspeita de falsidade que paira desde então sobre a própria literatura.
12 Comentários
Muito bom! Mas não dá idéia (com acento por que eu gosto dele)para os caras Sérgio. Olha que se alguém inventa de fazer isso de verdade vai ter muito Ghost Writer perdendo emprego. Fora que assim como os livros iriam começar a apresentar selos como “livre de Jerominho” como meu cereal matinal ´livre de gordura trans”.
Estou esperando o livro e por favor, faça um evento de lançamento aqui em São Paulo.
Agora entendi de onde veio o Dan Brown 🙂
Abs!
Caro Sérgio, você andou lendo o “A Era das Máquinas Espirituais”, do Ray Kurzweil ? 🙂
Agora, sério, vou te dizer uma coisa, sei não se já não estejamos muito próximos desta distopia… Vc chegou a ler aquele meu post, lá no antigo Pontolit 1.0, sobre o projeto Booklamp?
Para fechar: tenho a impressão de que este teu texto é uma “outra face da moeda” relativa à pergunta que o Paulo Coelho colocou esta semana em seu blog: “Does context make Art?”
Eu fiquei achando que você ama a idéia Jerominho.
Não, não. Mariana, ele só acha a “maior parte da literatura-literatura lançada entre nós nos últimos tempos” ruim. Bem ruim.
Esse é um dos meus preferidos.
Fernando: é por aí. Quanto a lançar em São Paulo, vamos ver se a editora se anima. Se você garantir presença, já temos um, que é melhor que zero.
Claudio: pode mandar o link?
Abraços.
Obrigado, Isabel! Dos meus também.
Sérgio, faça-me o favor! Já são dois então! Eu garanto que o Eric Novello irá, eu vivo encontrando ele em lançamentos por aqui.
Sure: http://paulocoelhoblog.com/2009/01/05/does-context-make-art/
Agora imaginemos, Sergio, que o que contextualiza essa “moeda” [talvez fosse melhor seria viabiliza] seja o que Blanchot descreve no capítulo “O desaparecimento da literatura” de “O livro por vir”.
* melhoremos os “colchetes”: [talvez “viabiliza” fosse melhor], agora sim, está mais inteligível.
Mudando um pouco de assunto [o assunto da semana]: o BROffice já possui corretor ortográfico seguindo as novas regras ortográficas.
Poxa, talvez eu esteja desacostumado a ler boas coisas e isso esteja afetando meu julgamento, mas fazia muito tempo que eu nao lia um artigo de jornalismo cultural tao interessante quanto este do Washington Post. Serah que é tao dificil assim achar idéias interessantes e textos longos e reflexivos, ou sou eu que estou procurando nos lugares errados? Ajuda, por favor!!!!