Existe uma cidade, uma cidade belíssima, que está indo para as cucuias. Mas, coisa curiosa, a literatura que nela se produz não parece muito interessada em refletir isso. Consciência do próprio caráter de artifício, alergia a temas que possam ser considerados políticos, esteticismo, cinismo ou apenas vocação para outros tipos de olhar, o fato é que a maioria dos escritores do Rio (e eu me incluo aí) tem adotado um certo ar blasê enquanto o velho espírito carioca estrebucha na calçada. Como se, sei lá, precisássemos fingir que é dor a dor que deveras sentimos.
Fernando Molica é uma exceção. Sendo também jornalista, e dos bons, há anos se ocupa de traduzir os signos mais vistosos dessa queda, que na imprensa são rasos e febris, ruído puro, para a linguagem saturada de sentido da literatura. Correndo os riscos embutidos em seu projeto – inclusive o de ser visto como herdeiro do populismo literário de um José Louzeiro, coisa que não é –, divide sua fé em doses iguais entre realidade e ficção, sem fazer caso excessivo da desconfiança que nossa época devota a ambas. A sobriedade desse olhar realista mas bem-humorado, que repudia esquemas absolutos e tramas mirabolantes, é uma proeza e tanto, especialmente para um botafoguense.
“O ponto da partida” (Record, 192 páginas, R$ 32), uma esperta – e negra, e melancólica – crônica de costumes carioca, é o novo romance de Molica. “Notícias do Mirandão” (2002) ainda é seu livro de que mais gosto, mas este chega perto de ameaçar essa liderança. O Rio já pode ir para as cucuias em paz: pelo menos um de seus cronistas não deixará tudo terminar em pós-moderna algaravia.
25 Comentários
Gostei da parte “especialmente para um botafoguense”. Seriam os torcedores do botafogo fabricantes de literatura fantástica? É por aí???
Grande Molica. Vc tocou no ponto: é mesmo o contrário do blasê. Exceção no atual panorama.
Preciso ler o Molica, urgentemente.
Agora, a superavalorização de torcida por time A ou B na consideração da literatura de alguém é um despautério. Futebol é uma besteirinha que mexe com a paixão de gente emocionalmente frágil, besteririnha essa manipulada por dirigentes corruptos, que ganham muita grana com isso.
A literatura do Molica — ou de qualquer escritor — pode ser boa ou ruim (não conheço para emitir opinião) independentemente de ser ele tocedor de Botafogo, Flamengo, Ibis ou sei lá…. A propósito, sou Flu….
Cezar Santos: sem senso de humor, realmente é um despautério.
Esse entra na fila de leitura, gracias pela dica.
Engraçado que quando escrevi o histórias da noite carioca (que é um livro de humor, feito para perder o amigo mas não a piada) eu trabalhava em uma indústria, no meio de uma favela relativamente perigosa (época de Mr. Beira Mar mandando ver), com funcionário me ameaçando de morte, frases do tipo “aqui você fala o que quer, mas lá fora quem manda é a gente” e, sei lá, de alguma forma eu não conseguia entrar no clima pesado das histórias que eles me contavam e de tudo que viviam (e em parte eu com eles). Eu continuava tratando todo mundo com um sorriso no rosto e respondendo as ameaças das formas mais absurdas, desarmando caras fechadas, puxando conversa. Não sei explicar a opção. Achei que ia terminar o comentário com a resposta, mas ela não apareceu.
Off-topic:
Sérgio, já que amanhã será aniversário do nascimento do Monteiro Lobato (data que recebeu o pomposo título de “Dia Nacional do Livro Infantil”), não caberia um tópico dedicado a um dos lançamentos editoriais do ano, a reedição das obras completas desse notável escritor após tantos anos de briga judicial dos herdeiros com a editora Brasiliense?
Refletir sobre o Rio é sempre importante.
Penso que (ao menos em relação aos escritores cariocas) não precisamos ser
tão pessimistas. Quem vive o problema – eles são notórios -, certamente, os rumina e logo, logo a pena de muitos começará a parir os produtos dessa ruminação. Entretanto, uma pergunta (pelo menos em mim) não se cala: o que afinal é esse “espírito” carioca?
Não saiu no jornal, mas vejam esse pequeno trecho de Santos Dumont Número 8: Se hoje, nos livramos das tuberculoses e febres amarelas, objeto de ataque e críticas no início do século XX, hoje, uma doença tão grave ou pior, a violência, nos faz constatar que no Rio de Janeiro do início do século XXI, ainda, como uma espécie de praga com a qual somos obrigados a conviver eternamente, precisa voltar a escutar aquelas, ainda atuais palavras do senador Soares de Souza, proferidas em 1903. Provavelmente estas palavras ainda ecoarão por muito tempo em nossas mentes, Na atualidade, a política da cidade do Rio de Janeiro deve ser outra: obter as condições de vida. Tudo mais pode ser excelente, ótimo, mas está em um plano inferior…
Vejam que (premonitoriamente, penso) não incluí a dengue na lista das doenças erradicadas.
O Rio dos 443 anos não foi sempre o sonho da década de 1950 do qual acordamos abruptamente com a ida da capital federal para o planalto central.
Leiamos Memórias da Cidade do Rio de Janeiro, de Vivaldo Coaracy, tenhamos esse livro à nossa cabeceira, para entendermos que se realmente existe um “espírito” carioca, infelizmente, ele já não passa disso: um translúcido espírito.
Logo, caberá sempre aos vivos (logicamente, amparado nos ensinamentos do passado) contribuírem para a mudança deste cenário nefasto.
Parabéns ao Molica por responder sim ao chamado de sua cidade. Ela, a cidade, ainda não está abandonada por completo. Ela ainda tem aos cariocas que a amam, tenham estes nascido aqui ou não, pois ser carioca é um estado de espírito.
Que interessante: será o tal “espírito” carioca reencarnado? Não lá fora, nos outros, mas dentro de nós mesmos?
E, como muito bem lembrado por Rafael, amanhã Monteiro Lobato, se vivo fosse, completaria 126: um menino… 🙂
A Academia Brasileira de Letras e a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil dedicarão o dia de amanhã ao escritor.
Sob a coordenação da jornalista Laura Sandroni, a Acadêmica Ana Maria Machado ao lado dos escritores J. Roberto Whitaker Penteado, Marisa Lajolo e Lygia Bojunga trazem para o seminário “Lembrando Lobato” as reinações do criador de Jeca Tatu e do Sítio do Picapau Amarelo.
O evento será no Teatro R. Magalhães Jr., na ABL, Av Presidente Wilson, 203, Centro, Rio de Janeiro. Entrada franca.
Os eventos também serão transmitidos ao vivo pelo portal web da ABL.
O melhor livro que conheço sobre o Rio de Janeiro de hoje chama-se O dia em que Zumbi tomou o Rio e foi escrito – pasmem! – por um angolano: José Eduardo Agualusa.
Morram de vergonha e humilhação, escritores cariocas umbiguistas!
Como se pudesse haver alguém mais umbiguista do que o sr. Agualusa.
“Futebol é uma besteirinha que mexe com a paixão de gente emocionalmente frágil, besteririnha essa manipulada por dirigentes corruptos, que ganham muita grana com isso”.
Mas que declaração mais……. tricolor
Futebol é muito mais que isso, Cezar Santos. Muito mais…
João do Rio:
Não acho não. Aliás, acho que o “Sr. Agualusa” tem uma mirada social muito interessante. O senhor, like me, já leu toda a obra do Agualusa, Sr. do Rio?
(Ai, como você soou pedante agora, Saint-Clair. Nem eu mesmo me agüentei!)
Saint-Clair, refiro-me à pessoa do sr. Agualusa (um poço de vaidade), não à obra. Exatamente como V.Exa. fez com relação aos “escritores cariocas umbiguistas”. A propósito: V.Exa. nasceu onde?
Prezado Sr. do Rio:
Nasci na magnífica cidade de Cambuquira, no Sul de Minas Gerais. Cambuquira tem as melhores águas do Circuito das Águas (muito superiores às de São Lourenço ou Caxambu) e o clima e bastante aprazível. Os meus quase 130 quilos confirmam que a comida também é maravilhosa. Conhece a referida cidade? Sugiro-a para as suas próximas férias, com a Sra. do Rio.
Abraços mineiros!
Corrigindo:
Faltou um acento aí em cima, num “e” (é “é”).
Saint-Clair, o contista mineiro
Pelo visto, V.Exa. não me conhece mesmo (e, assim sendo, demonstra não conhecer a literatura que versa sobre a Cidade Maravilhosa): não há Sra. do Rio. Gosto do sumo de outras frutas e, a exemplo de V.Exa., não dispenso uma boa comida, o que minhas formas robustas atestam.
Prezado Sr. do Rio,
Perdoe-me, mas só quis ser delicado. Por isso usei o eufemístico “Sra. do Rio”. Mas onde está “Sra. do Rio” leia “O outro Sr. do Rio, seu ‘companheiro'”.
E a bichaiada faz a festa… rsrs
Se existisse um “O dia em que Zumbi tomou o Rio” feito por um carioca (ou paulistano) provavelmente seria mais um livro da nova geração terror, rs.
HAHAHAHAHAHA, Eric, seu sacana 😉
[off-topic:
Saint-Clair, vc saiu da aula da Carmen?]
Creio que o que ele quis dizer sobre os botafoguenses se baseia num velho ditop que tem coisas que só acontecem com o Botafogo, ou seja, é uma torcida mais supersticiosa e mística, mas é minha interpretação apenas…
Isso, Elcaballero: supersticiosa, mística, com a volúpia da vitimização e chegada a uma teoria rocambolesca da conspiração, traços que se agravaram nos últimos tempos. Quem mora no Rio sabe disso. Mas é claro que foi só uma piada com meu amigo Molica: não acredito que esse tipo de consideração, por mais profunda que seja, chegue a afetar significativamente a crítica literária. Um abraço.
sabem de algum paulista que está escrevendo sobre São Paulo como Molica escreve sobre o Rio?