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O curioso caso do padre Simão

10/12/2012

“Santo Agostinho e o demônio”, de Michael Pacher (1430–1498)

A dar fé ao viajante inglês William Boyd Sennett, que em 1819 teria tido diante dos olhos as memórias posteriormente perdidas do então recém-falecido bispo Antônio Simão das Neves

(e não vejo por que não lhe dar mais fé do que à arenga anticlericalista e factualmente vaga que no fim daquele século publicaria em São Paulo o anarquista Vicenzo Cucco, outra fonte habitualmente consultada pelos estudiosos da história de Simão),

a dar fé a Sennet, como eu ia dizendo, no rigoroso inverno mineiro de 1777 o então jovem padre baiano viu-se com a alma “toda em farrapos”, numa crise de fé que teria como fulcro o amor (se platônico ou carnal, nunca se pôde comprovar) por dona Maricota, esposa de um comerciante de pedras preciosas de Vila Rica chamado Olegário,

o que bem poderia configurar incidente banal ou ao menos não muito destoante das provações sensuais enfrentadas por tantos homens de batina ao longo dos séculos, porém

(ai, porém),

naquele instante demoníaco o futuro bispo se pôs a febrilmente deitar palavras ao papel em surto logorreico de todo semelhante a um transe de possessão, ao qual não faltavam olhos revirados, gemidos de dor excruciante e uma espuminha a borbulhar nas comissuras da boca,

episódio aterrador e jamais explicado pela ciência que durou (o relato do ilustre estrangeiro é preciso neste ponto) três meses, dezessete dias e nove horas, resultando nos quatro livros hoje lendários que implicariam gravemente o padre Simão com o Santo Ofício,

livros sequenciais que levavam, segundo Sennett, os títulos enigmáticos de Romantismo, Modernismo, Após-Modernismo e Óbito da literatura

e que, se terminaram por não custar ao seu autor a morte na fogueira, tendo Simão escapado no último minuto graças a poderosos e insuspeitados pistolões, não puderam evitar as chamas eles mesmos e logo eram cinzas dispersas pelos ventos de Minas,

a que os poetas chamam postilhões de Éolo,

tudo o que restou de tais obras sendo a reminiscência fantasmal de um bispo arrependido em suas memórias de idoso, estas por sua vez também desaparecidas e conservadas apenas na lembrança de um viajante inglês, motivo pelo qual não estamos certos de haver fundamento na tese hodiernamente sustentada por um ou dois eruditos mais trêfegos de que, tivesse aquela tetralogia de Antônio Simão das Neves sobrevivido à Inquisição,

seria inteiramente outra a história da literatura brasileira e universal.

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