Como autor, fico preocupado com o envolvimento da [editora] Scribner nessa “edição restaurada”. Com tal remodelação como precedente, o que fará a Scribner se, por exemplo, um descendente de F. Scott Fitzgerald exigir que seja removido de “Paris é uma festa” o capítulo sobre o tamanho do pênis de Fitzgerald, ou se o neto de Ford Madox Ford quiser suprimir as referências ao odor corporal de seu ancestral?
O lançamento de uma nova versão de “Paris é uma festa”, livro de memórias de Ernest Hemingway, com muitos cortes e acréscimos feitos por um neto do autor em nome de uma suposta fidelidade maior às suas “intenções”, é demolido com método e fúria neste artigo (em inglês, mediante cadastro) publicado no “New York Times” por A.E. Hotchner. O articulista exibe a autoridade de quem recebeu o manuscrito pronto das mãos do próprio Hemingway no início dos anos 1960, pouco antes de sua morte. A motivação por trás da nova versão feita pelo neto, acusa Hotchner, é escusa e mesquinha – poupar a imagem da avó de comentários desairosos.
Mas esse episódio de aparente stalinismo editorial rende um debate mais profundo do que parece à primeira vista. Não exige muita imaginação enxergar aí, sob o caô de uma respeitosa “restauração”, uma espécie de tratamento Wiki da literatura, um discurso sobre o discurso, uma vez que, como apregoa certa crendice da moda, “o autor está morto”. No caso de Hemingway, está mesmo, literalmente e por um ato de vontade. Mas tratar como morta a própria idéia de autoria, em seu caso, envolve complicações adicionais.
Poucos sujeitos terão sido mais chatos e exigentes quanto ao peso e ao lugar de cada palavra, de cada vírgula. A escola de escrita que esse estilo popularizou, e que foi mais influente do que a maioria consegue hoje sequer imaginar, anda com as salas de aula vazias e teias de aranha pelos cantos. Isso não muda o fato de que, em sua ética, a troca de um único artigo à revelia do autor é simplesmente criminosa.
Wiki-Hemingway? Pode ser. Mas, se é verdade que o autor morreu, por que não tiram seu nome da capa?
23 Comentários
Primeiro eliminaram os cigarros do Tom & Jerry. Pouco a pouco a censura vai tomando conta e nem precebemos. Agora estão multilando as memórias de uma das personalidades mais interessante do séc. XX. Melhor eu comprar Paris é uma festa antes que só exista a versão mutante para Kindle.
“Editar” (leia-se: cortar, incluir, corrigir e modificar por qualquer outro meio, como por exemplo alterando a ordem e número de capítulos) qualquer livro, mesmo que escrito por um idiota, e ainda que com objetivo de “aprimorá-lo” (o que muitas vezes é bem subjetivo), me parece criminoso sempre, dado que implica alterar a obra. Simples assim.
Apenas atualizações ortográficas e a correção de erros crassos de gramática e digitação deveriam ser toleráveis. Esse caso parece-me apenas um abuso em grau maior. Abaixo o arbítrio (e, muitas vezes, a cara de pau) dos editores.
O neto-revisor do Hemingway não deve fazer ideia da importância do autor, mas deve conhecer muito a rentabilidade de sua obra. Hemingway é tão fundamental que consegue ser idolatrado nos EUA e na Cuba castrista ao mesmo tempo.
Wiki-Hemingway é genial.
O neto quer ser corroteirista do avô! Pobre Ernest, deve estar deprimido na sepultura.
Li a maioria das obras de Hemingway, estilo único, viril, que sem dúvida hoje seria considerado “politicamente incorreto”
Acho íncrivel o que esse “zé ruela” quer fazer, um remake na obra do avô.
Seth Grahame-Smith fez um mashup em “Pride and Prejudice with Zombies” (manteve Jane Austen como co-autora). O lviro chegou ao topo da lista do “movers and shakers” chart da Amazon UK. O nome da autora na capa transforma-se em meta ficção.
Até que ponto também é justo lançar “inéditos” de um autor já falecido?
Sobre a morte do autor (é famoso o ensaio de Barthes, publicado na década de 60, se não me falha a memória, que leva esse título), digo que ele SEMPRE estará morto (mas seu fantasma é eloquente). Importa menos o autor que a obra.
É um interessante tema, me lembro, através do qual viajei à roda do SD8 (por isso o seu autor-personagem é um fantasma).
Devo dizer que se ele escreveu, então é porque queria que fosse
editado. A obra e a vontade do autor deve prevalecer. Seu neto
então deve escrever a sua própria estoria, assim eu acho.
Bom ver que a insanidade ainda não é acachapante. Ter alguém no mundo como este senhor do Blog, sr. Sérgio Rodrigues, é mais do que salutar; é da essência. Sr. Sérgio, nesta mesma toada o “Henry, June & Me” pode ser “editado” e apresentado como livro didático, ou não? Se, ao invés de “editado”, coloco “manietado”, também vale?
Abraços,
Morvan
Sérgio, só pra avisar que não precisa de cadastro pra ler o artigo do NYT não. É só clicar no link que você colocou. Quanto à história em si, que medo… como é que o editor se presta a algo assim? Aceitar a publicação de um livro reescrito? Me lembra as Edições de Ouro da minha infância, que chegaram a reescrever um final mais feliz para “Little Women”, onde uma das irmãs March não mais morria. “Livros recontados”. Não se mexe em texto de outrem, a menos de ter seu acordo explícito (vivo, né).
Off-Topic
Sérgio, você viu a lista dos romances sa Copa de Literatura Brasileira?
Ainda bem que eu já tenho um exemplar bem velhinho!!!
Será que esse trabalho todo era pra esconder dos leitores que o Hemingway era viado?
Eu como pobre e comum leitora de livros quando sobra tempo, temo e tremo só de pensar que já possa ter mais lido mais livros manipulados que se possa imaginar. Isto é um ultraje! Nós leitores comuns já sofremos com traduções doídas de ruins, agora vamos ser vítimas de mais este embuste? Imagina se alguém resolve colocar Tolstói de co-autor… Socorro… alguém guarde todos os manuscritos do mundo literário… alguém audite os arquivos de computador nestas épocas de autores que escrevem direto no micro. O maior prazer é ler um livro original, da forma como o autor o fez! Então agora vai ter livro “transgênico” também!
É uma pena que sejamos tão românticos em relação à uma suposta sobrenatural criatividade dos escritores.
O que existem são ideias que precisam ser comunicadas e pronto. Se o neto atualiza o avô ótimo ( “The Child is father of the Man”, escreveu William Wordsworth).
Vou lhes dar um exemplo. Alías 3. Primeiro duas citações, uma de Barthes, outra de Derrida, para ambientá-los ao que vem a seguir (que muitos certamente considerarão heresia):
“We know now that a text consists not of a line of words, releasing a single ‘theological’ meaning (the ‘message’ of the Author-God), but of a multidimensional space in which are married and contested several writings, none of which is original: the text is a fabric of quotations, resulting from a thousand sources of culture.”
– Roland Barthes
“…a text that is henceforth no longer a finished corpus of writing, some content enclosed in a book or its margins, but a differential network, a fabric of traces referring endlessly to something other than itself, to other differential traces. Thus the text overruns all the limits assigned to it so far…”
– Jaques Derrida
Perfeito. Agora vamos ao que muitos aqui considerarão heresia (eu chamo de realidade).
Em 2007, os engenheiros de software do Google Books (considerados por muitos as bruxas de Salem dos nossos tempos) inventaram o “Popular Passages”: a partir dos milhões de livros digitalizados na base de dados do Google Books, essa aferramenta vasculha os textos e identifica passagens populares (ou repetidas) em diferentes livros.
“A moveable feast?” (“Paris é uma festa”) ainda não está aberto. Mas, “The old man and the sea” está. Deste livro, as duas passagens mais conhecidas são duas: a primeira aparece em 40 livros publicados entre 1936-2004. A segunda, em 70 livros que viram à luz entre 1912-2007.
Sabemos que a novela de Hemingway foi lançada em 1952.
O que quero dizer com isso? Bem, nada de especial, apenas lembra que o livro na web, de fato, exuma os mortos (e humaniza os mitos).
Essa onda do politicamente correto é cada vez mais desanimadora. Chego até mesmo a duvidar da tão propalada liberdade de expressão.
Mas, sinceramente, o que esse idiota – único adjetivo possível para este neto de Hemingway, autor que admiro ao extremo – quer é aparecer. Porque, pelo jeito, não serão as suas qualidades próprias que vão lhe render qualquer tipo de reconhecimento…
Acho que, se o Hemingway soubesse que isto poderia acontecer, nem teria se matado …
Se o cara quer mexer no livro, que deixe bem claro que não é a versão original e quem foi o autor das mudanças.
Seria algo como “Releitura de “Paris é uma Festa” por fulano de tal”
Uma questão que me ocorre: onde fica a liberdade de expressão, se no futuro alguém poderá livremente modificar o que eu disse? A adulteração (essa é a palavra) não fere a minha liberdade de exprimir (e, consequentemente, de manter expresso) o que eu disse?
Paris é uma festa – com brigadeiro e cajuzinho.
Versão para menores 🙂 Abss!
Boa postagem. E bem lembrado: se o autor morreu, então não há intenção que explique a totalidade de sentido do texto (sera que existem isso em literatura?) além das palavras (escolhas estilísticas, temáticas, etc.), e nada mais do que elas. Quando o neto resolve censurar, alegando intenções do avô, ele está, na verdade, ressucitando-o (não como escritor, mas como autor: figura literária, não civil). Morte do autor para que os textos sejam preservados na íntegra e não censurados sob justificativas extra-literárias de “verdadeiras intenções” ou coisa que o valha. Ah.. e não tiram o nome da capa por questões jurídico-financeiras (o tal do legado dos herdeiros do caso wiki-machado). Gosto de você, Sérgio. Abraço
Oi, Sérgio. Será que é bem assim? Afinal, existem passagens inéditas sob o nome de “Paris sketches” e que possuem, sim, muito interesse.
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