Um capítulo decisivo dessas relações transnacionais foi a consagração de García Lorca em Buenos Aires, em 1932, não evitando, porém, que Jorge Luis Borges o antagonizasse e chamasse de “andaluz profissional”. Borges, por sua vez, freqüentava grupos literários argentinos de vanguarda, influenciados por Darío. Na ocasião, Lorca acolhia Neruda, que reconheceria a importância desse encontro em sua Ode a García Lorca. Neruda, por sua vez, hostilizava César Vallejo, acusando ainda Vicente Huidobro de contribuir para essa ruptura. No início da guerra civil espanhola, emergia para a vida literária Octavio Paz, em um momento em que se confundiam criação e resistência antifascista. Por conta de divergências na organização de uma antologia de autores hispano-americanos, Paz e Neruda acabariam pegando-se em um banquete (o registro desse e outros episódios, em Sombras de Obras de Paz).
Uma geração de espanhóis influenciada por um nicaragüense; o poeta de maior prestígio dessa geração hostilizado por um argentino, o que não o impediu de fascinar a um chileno rompido com um peruano, em um ambiente literário que logo receberia a um mexicano. Tais episódios podem parecer um registro menor, da petite histoire. Mas a série de aproximações e afastamentos entre poetas de diferentes países, porém da mesma língua, do começo do século XX até hoje, constitui uma rede de afinidades e antagonismos, atração e distanciamento, de evidente relevância. Decisiva para que Octavio Paz, a uma dada altura de Os Filhos do Barro, pudesse declarar: Meu ponto de vista é parcial: é o ponto de vista de um poeta hispano-americano. Note-se: poeta hispano-americano, e não apenas mexicano.
Esse artigo de Claudio Willer na revista Agulha é, entre todos os que já li, a mais lúcida e ponderada defesa do acordo de unificação ortográfica da língua portuguesa sob o ponto de vista da circulação de obras literárias. A comparação com o espanhol, que tem uma só ortografia pairando sobre sua miríade de nacionalidades e idiossincrasias locais, é irrespondível – ou quase isso. Será que uma obra ao mesmo tempo tão latino-americana e tão cosmopolita como a do genial Roberto Bolaño poderia ter germinado longe desse solo de influências cruzadas que Willer descreve nos parágrafos acima?
Agora que o acordo parece uma questão de tempo, com todos os seus transtornos para a vida prática e suas compensações à primeira vista magras, talvez tenha chegado a hora de promover um debate público com mais profundidade – embora os escritores brasileiros não gostem muito de debates públicos e menos ainda de profundidade. Em Portugal, sabe-se que José Saramago é simpático ao acordo ortográfico e António Lobo Antunes lhe torce o nariz. E aqui?
Quando eu digo que a comparação usada por Willer é “quase” irrespondível, estou pensando no clamoroso abismo existente entre os perfis internacionais do espanhol e do português – perfis que se refletem, sim, na ortografia, mas que a antecedem e a ultrapassam, como o próprio autor reconhece. Mexer em uns poucos acentos e letras dobradas do português é arranhar a superestrutura do problema, enquanto uma enorme base de indiferença e até de hostilidade cultural permanece intocada. Resta decidir se não será, mesmo assim, um bom começo.
45 Comentários
Não sei não… Posso estar sendo ingênuo (frequentemente sou, reconheço) mas acho que não precisamos de uma unificação falhada – porque o Acordo Ortográfico é falho, parcial, às vezes ingênuo como um saint-clair -; veja só o exemplo do Saramago: ele não permite que o português de seus livros seja “adaptado” para o brasileiro e nem por isso suas obras deixaram ou deixam de fazer imenso sucesso em nosso país. Elas circulam pra caramba aqui em Belíndia. Tanto que já houve um romance (acho que Ensaio sobre a lucidez, mas não estou bem certo) que foi lançado primeiro no Brasil e só depois em Portugal…
Vamos aos fatos:
(a) não dá para acreditar que toda essa rede de influências, de contra-influências, de abjurações de influência, de enaltecimento, de juras de ódio eterno não teria sido tecida não fosse a uniformidade ortográfica do espanhol (será que García Lorca teria deixado de acolher Neruda, caso houvesse diferenças na ortografia do espanhol da Espanha e o do Chile? Em tal hipótese, Borges teria dificuldades para entender a escrita de Ruben Darío? Haveria relação de causa e efeito entre a uniformidade ortográfica e o trânsito de idéias e influências entre os diversos autores de língua espanhola?).
(b) a diversidade ortográfica, que abarca um universo insignificante de vocábulos, nunca foi obstáculo de entendimento para nenhum escritor profissional (será que Graciliano Ramos, ele que fora tão influenciado por Eça de Queirós, v.g. Caetés, tinha dificuldades imensas para ler Miguel Torga por causa da ortografia?).
c) a língua inglesa convive tranqüilamente com as regras distintas de ortografia válidas para cada lado do Atlântico e mesmo assim os autores americados e os inglesas se deixaram influenciar mutuamente.
d) os livros do Saramago são editados no Brasil, por exigência do próprio autor, com a ortografia portuguesa – e vendem cá muito bem.
e) as dificuldades enfrentadas por um estudante médio brasileiro quando se aventura a ler um autor luso não residem na ortografia, mas no léxico.
f) um decreto que impõe, pela vontade imperial de um punhado de acadêmicos, modificações casuísticas nas regras ortográficas pouco alterará o quadro de alheiamento e distanciamento entre os países lusófonos.
g) esse mesmo decreto, entretanto, jogará na clandestinidade gramatical milhares de estudantes que se alfabetizaram sob as regras atuais de ortografia.
A acordo ortográfico é, enfim, uma estupidez monumental.
Digo mais: se esse acordo entrar mesmo em vigor, eu, por não reconhecer a autoridade de nenhum órgão legiferante sobre o idioma, continuarei a acentuar minhas idéias.
Mudar para facilitar? Ah! a preguiça…
Concordo com o Rafael e também não tenho mais paciência para mudanças.
Usando as palavras de Saint, acho o acordo falho e sem foco. Por favor me corrijam, mas o que esse acordo realmente quer é tornar todas as pronúncias corretas comendo para tal alguns acentos da forma escrita. Pois, Póis, Pòis, Pôis, Pöis então 🙂 continuaremos a não nos entender nas conversas, mas poderemos bradar que falamos as mesmas palavras, a mesma língua (meu avô ficava fulo quando eu não entendia o que ele falava, o que era quase sempre).
Algum professor de português presente para me dizer como o Você e o Vós são ensinados atualmente nos colégios? O vós que raramente usamos ganhará força renovada por aqui e o você por aí?
E uma dúvida relevante agora: quantos países realmente aceitaram esse acordo?
Abss!
Exatamente! Os partidários da unificação ortográfica (há louco para tudo) acreditam piamente que um vernizinho qualquer irá fazer sumir o abismo cultural gigantesco que se abriu entre Brasil e Portugal. Uma geração de estudantes será o rato de laboratório de mais um experimento concebido por tecnocratas, essa casta de lunáticos que esperam solucionar todos os problemas do mundo mediante alterações legislativas.
chuif
Oi Sérgio
O comentário lacônico aqui de cima é meu, com um link para um post que escrevi sobre a possível extinção do nosso querido trema. Não me conformo.
beijos da tua amiga
Cris
Foda-se o trema!
Perdão, Sérgio, mas Saramago não é simpático ao acordo. Pelo contrário, lhe faz duras críticas. Chegou a dizer que, a esta altura da vida (dele), tem o direito de continuar escrevendo como antes.
Realmente espero que o trema não vá embora. Ele é mó legal.
Caro Sérgio e demais,
Em agosto do ano passado, tive a oportunidade de ir para Angola, cujo recente e complexo processo de “descolonização” explica um pouco a triste realidade dos seus indicadores. A razão era profissonal, mas não por isso deixei de querer observar certos aspectos linguísticos durante a viagem. Só em Luanda, por exemplo, província que concentra hoje cerca de 1/3 da população, pude ouvir três “línguas” (não sei exatamente o termo técnico) distintas, além do próprio português. O momento mais curioso, porém, foi quanto eu tentei negociar um cordão na chamada feira do benfica: para cada palavra que o negociante trocava comigo, duas eram trocadas em umbundo (acho que a grafia é essa) com o seu sócio. Lusofonia?
Bom, o fato é que acabei levando o bendito cordão, espero que por um bom preço, mas a experiência foi suficiente para me convencer de que a badalada “identidade lusófona”, sobretudo quando se trata de países fora do eixo Brasil-Portugal, não é uma bandeira tão simples assim como talvez seja mostrada por aí…
Confesso que já alimentei posições bastante inocentes em relação à reforma. Muitas até estimuladas por uma leitura apressada do lastro simbólico que, vide a CPLP, parecia a sustentar: a imagem de uma lusofonia “una”, “única”, “universal”. Mas ortografia, como bem foi lembrado aí em cima, não é sinônimo de semântica. E se for através da sua unificação que estimularemos maior circulação de livros e idéias, que seja bem-vinda: talvez tenhamos aí mesmo multiplicadas as chances de nos vermos em nossa própria diversidade.
Perfeito, Sérgio. Simpático ele é. “Duras críticas” foi exagerado. Mas, pelo que li, me parece que ele é mais simpático a que se cumpra o acordo, se foi aprovado, não ao acordo em si.
É ler Saramago e perceber facilmente que a língua é a mesma. Não é por causa de meia dúzia de acentos e cês mudos que precisamos rasgar todos os livros de nossa estante.
É óbvio que o acordo tem puro interesse econômico (e viva Houaiss, garoto-propaganda do acordo, que venderá como nunca).
Abraço,
Pablo
http://cadeorevisor.wordpress.com
Nao sou linguista, mas o problema da unificacao da lingua abarca muitos outros problemas que os somente gramaticais ou a colocacao das enclises no lugar das proclises. Unificacao gramatical eh otima para encher seminario com nefelibatas chapa-branca.
Os Estados Unidos sao um pais onde nao ha um idioma oficial e quase todos falam ingles mas nao ha uma lingua oficial e isso nao impede que um austaliano entenda prefeitamente o que um americano de Noth Dakota esta dizendo. Nao sei se no caso de um brasileiro e um mocambicano, mesmo dentro de 5 geracoes, isso seria possivel.
Alias, no Brasil, sim , a lingua portuguesa eh oficial, baseada em regras gramaticais e estilisticas – e ateh mesmo historicas centradas no IHGB e posteriormente no Petit Trianon. Em Portugal, Angola, Timor, Cabo Verde, tambem. Entretanto, nesses paises de lingua portuguesa, tao burocraticos quanto o nosso, a lingua eh uma instituicao autonoma que da poder e prestigio a quem a fala corretamente – veja o caso de Goa athe pouco tempo atras, antes de ser engolida pela India. Portanto, na minha opiniao, essa unificacao eh uma miriade do Itamaraty.
Quer alguns exemplos praticos e prosaicos do meu ceticismo – contrapondo o do que o Houaiss chamava de identidade gramatical? 1) tenta encontrar um codigo civil ou penal atual, de Angola na Biblioteca Nacional, por exemplo. 2) Pega um livro de um autor lusofono. Nao.. nao.. do Agualusa, nao por que este estudou em Portugal… o Mia Couto tampouco por razoes obvias. Falo de Germano Almeida de Cabo Verde ou de um Luis Cardoso do Timor – estou esquecendo outros que li recentemente – e tenta encontrar uma lingua comum…. 3) tente lembrar de 3 escritores de cada um dos paises lusofonos – mas primeiro tente saber quantos sao – e depois a gente conversa sobre unificacao das linguas, dos esofagos, dos figados…
Agora, nao ha duvida que a militancia do Saramago – sendo um nobel – faz sentido. Uma lingua unificada dah sentido ao Quinto Imperio – ja dissera o Vieira.
Esse acordo ortográfico é mais um capítulo da velha mania luso-brasileira de querer controlar todo e qualquer aspecto da sociedade… é fruto do nosso fascismo moreno.
Os brasileiros já têm sérios problemas de relacionamento com a “língua oficial” – veja-se a crase, as regrinhas de acento e o índice de indeterminação do sujeito -, e agora vamos ter que reaprender mais uma vez o que nunca soubemos direito? E isso por quê, porque um grupelho de tecnocratas resolveu unificar duas culturas não-unificáveis?
Fala-se que isso baratearia os livros didáticos, que estariam adaptados à grafia dos dois países… mas qualquer um que já tenha lido a wikipédia em português sabe que o problema não está só nas letras mudas e nos a(c)centos… é o léxico, a semântica, a sintaxe… tudo é diferente. Vão fazer o quê depois, arbitrar um jeito “certo” de dizer as coisas, para terminar de unificar as culturas?
Aliás, por que é que precisamos unificar as culturas? O que nos faz especiais não é justamente essa diversidade? Que bom é pegar um escritor guineense ou angolano e ver que só metade do que ele escreve é português padrão…
Que tal pararmos com essa idéia de que existe um português “certo”, o da terrinha, e que os outros – inclusive o nosso, que é quase 20 vezes mais falado que o deles – estão errados?
Que tal assumirmos que o nosso português é diferente do deles sim, e é lindo do jeito que é, e não é errado coisa nenhuma? E que não tenho que escrever como um português, da mesma forma que não falo como um português, já que português não sou? Será que escrever do mesmo jeito em todos os lugares não vai piorar o problema?
Ah!
Ressuscitaram Farenheit 451!
Sérgio,
Neste ponto, concordo com você: o acordo ortográfico não é evidentemente parte de nenhuma conspiração portuguesa, concebida além-túmulo por D. Sebastião, para levantar o Quinto Império.
No entanto, um empreendimento que forçaria a reedição de todos os livros didáticos, a maior parte deles bancada pelo erário, é uma insensatez tremenda, tão mais desatinado se cotejado com a impossibilidade prática de realização dos propósitos a que se destina. Não acredito que a reforma seja um catalizador da circulação de livros didáticos entre países lusófonos, já que o maior obstáculo a essa circulação é ecônomico (quem, alguma vez, comprou um livro didático português aqui no Brasil sabe como ele é caro e inacessível).
Quanto aos estudantes, é verdade que eles, em sua maioria, não sentirão os efeitos da reforma: não lêem, não escrevem, ninguém exige deles, no trabalho e mesmo na escola, a cega obediência às regras gramaticais: a reforma será para eles algo tão distante quanto os avanços da física quântica.
Entretanto, aquela minoria dos estudantes que precisa dominar, ainda que de forma rudimentar, a linguagem formal (os que tentam vestibular, que almejam ingressar no serviço público), essa minoria sentirá terrivelmente os efeitos da reforma, pois esta, embora atinja um universo reduzido de vocáculos, alcança muitas palavras de uso corrente (v.g., vôo/voo, idéia/idea).
Se você mesmo considera tímida e insuficiente a reforma, se vê nela casuísmos e complicações desnecessárias (as novas regras de hifenização fazem algum sentido?), por que a defende? Só porque foi aprovada com o aval de uns quantos lingüistas de grife (como o Houaiss)?
E o exemplo da literatura de língua espanhola parece-me fraco demais, já que o intercâmbio de idéias no universo hispânico não foi devido à uniformidade ortográfica.
Sérgio,
Até compreendo que a unificação ortográfica, em tese, internalizaria mais o idioma, tornando-o mais permeável ao trânsito das idéias e de mais fácil assimilação para o estrangeiro.
No entanto, esse ideal, por mais belo que seja, não passa disso: um ideal. O que existe de concreto e palpável a reforma tal como proposta e aprovada – e ela é um desastre quase que completo.
E o custo de implementação da reforma, tal como concebida, suplantará enormemente os benefícios. O país não se pode dar ao luxo de reeditar todos os livros didáticos por causa desse azambrado projeto.
Sérgio, mas será que não seria realmente o caso de pensarmos o português como uma língua com duas variantes escritas, mesmo? Como falei antes, não é nem o acento circunflexo ou as consoantes mudas, mas a própria forma de dizer as coisas. Escrevermos iguais não vai nos fazer ‘lusófonos’; vamos continuar brasileiros ou portugueses. E viva a diferença! É isso que nos faz tão interessantes.
Estava pensando sobre a comparação com a língua espanhola, e acho que é impraticável. A América espanhola se fragmentou, não havia um país grande e culturalmente influente o bastante para competir com o padrão lingüíistico ditado pela Real Academía espanhola. Se os argentinos ou mexicanos resolvessem criar uma grafia própria, pareceria só uma excentricidade. Já no Brasil havia a unidade das colônias, uma academia nacional de letras e uma elite cultural anti-lusitana nos anos 1920. Aqui foi possível criar-se um padrão nacional separado do português, e que se converteu numa questão de identidade nacional — da mesma forma que a nossa dicção é diferente da deles e é típica daqui, e por isso se presta a uma identidade nacional.
Por fim, a América hispânica nunca perdeu uma noção de unidade cultural, que faz com que artistas mexicanos, chilenos e cubanos se entendam como herdeiros de uma tradição cultural lastreada no [i]castellano[/i]. No Brasil, a nossa tradição era a das elites culturais, entendidas não como paraenses, paulistas e fluminenses, mas como elites brasileiras (e anti-lusitanas). É completamente diferente.
Sérgio,
Só uma dúvida: em sua opinião, a reforma, tal como aprovada, contribuiria realmente para acabar com o cisma ortográfico que tanto prejudica o país no “concerto das nações”?
Mas será que o cisma entre os países acaba junto? Sei lá se a Wikipedia é padrão para qualquer coisa, mas é o principal canal em que portugueses e brasileiros convivem, e aquilo virou uma guerra lingüística… Parece até que se odeiam, e só não entram em guerra porque dá pra passar a maior parte do tempo separados.
Sérgio, veja se entendo o que você quer dizer com benefícios no concerto das nações: se houver só um padrão, basta um documento em português, e seria mais fácil para um estrangeiro saber que padrão aprender. É isso?
Mas, Sérgio, são tantas as exceções e duplas grafias admitidas pela reforma que a unificação por ela proclamada não passa de um engodo.
Como seria demasiada prentensão impor minha opinião (sou mero leigo nesses assuntos), remeto os interessados ao fundamentado juízo do professor Cláudio Moreno:
“O que não tem cabimento é continuar usando acentuação mas mudar algumas regras em nome de uma unificação que é utópica e impossível, pois, considerando o grande número de formas facultativas que foram mantidas, os livros do Brasil e de Portugal continuarão a ser diferentes. Jamais um livro escolar editado aqui poderá ser utilizado no além-mar, e vice-versa. A unificação ortográfica, que era a razão de ser da reforma, cai como um castelo de cartas — sem falar nas incontornáveis diferenças lexicais entre um país que apregoa “berbequim para betão ao desbarato” de outro que anuncia “furadeira para concreto em oferta” — e estão falando da mesma coisa.”
Pode-se ler o texto aqui: http://www.sualingua.com.br/06/06_deixem_paz.htm
O padre Luís do Monte Carmelo, quem primeiro tentou criar regras detalhadas e precisas para uma ortografia do português, em seu “Compendio de Orthografia” [Lisboa, 1767] usou, como epígrafe das mais de 800 páginas de seu livro, uma citação latina tirada das “Instituições Oratórias,” de Quintiliano, escritas há cerca de dois mil anos: “De minha parte, creio que, dentro dos limites prescritos pelo uso, as palavras deveriam ser soletradas como são pronunciadas. O uso é o melhor guia quando falamos, e devemos tratar a língua como moeda cunhada com a estampa pública. Mas mesmo aqui é necessário que empreguemos nossa faculdade crítica e devemos decidir o que queremos dizer com a palavra USO. Se definimos ‘uso’ apenas como a prática da maioria, teremos uma regra que afeta não apenas o estilo mas a própria vida, o que o torna muito mais sério. Pois onde encontraremos aquilo que, por ser certo, também será aprazível para a maioria? Definirei ‘uso’ então como a prática aceita de comum acordo por homens educados, da mesma maneira que, no que diz respeito às regras da vida, eu o defino como a prática com que estão de acordo todos os homens de bem.”
O texto tem cerca de dois mil anos, mas reflete o problema que ainda enfrentamos: ORTOGRAFIA [Caldas Aulete: “arte de escrever com os caracteres e sinais consagrados pelo uso”] É CÓDIGO [Caldas Aulete: “coleção de regras ou de preceitos sobre qualquer matéria não legislativa”]. Creio que só pensar nestas duas definições, à luz da citação de Quintiliano, seria o bastante para que a gente começasse a pôr em dúvida a necessidade de OFICIALIZAÇÃO de qualquer “acordo ortográfico.”
Ortografia, diz Quintiliano noutro trecho, não citado pelo padre Luís, é a serva do uso. Mas, há dois mil anos, o retórico romano não poderia pensar que, no momento em que vivemos, “uso” corresponde não apenas a uma relação espacial (por exemplo: os vários países que falam o português) mas também a uma que diz respeito ao tempo (os que escreveram antes de nós). Nosso CÓDIGO deveria permitir a leitura de Machado de Assis, como ele escreveu, como também a dos comentários desse blog. Ou será que, pela quarta vez, teremos de “re-soletrar” GracilianoRramos?
Mudança de código só se faz quando ele se torna incapaz de transmitir entre seus usuários as mensagens a cuja disseminação está destinado. E este, realmente, não é o caso atual. Mineiros como eu, que problemas temos em ler um livro publicado em Portugal que seja maior do que a que teremos em ler um livro que trate da Amazônia, do Nordeste ou da terra gaúcha?
Tentar legislar num campo que, pela sua natureza, não é legislativo mas nascido apenas de consenso entre pessoas cultas, é caminhar entre minas. E passar a vida inteira mudando as regras é pior ainda. [Creio que uma boa parte dos brasileiros reconhecerá esta como a quarta mudança a ter lugar durante sua vida!]
Meu antigo professor de inglês, Abgar Renault que, embora fosse excelente poeta, chegou a Ministro da Educação e membro da Academia Brasileira de Letras, nunca aceitou quaisquer destas reformas e “acordos.” Fora alfabetizado na década de 1910 e sempre escreveu português como aprendeu com sua primeira professora. Guardo um livro seu, “Poemas Inglêses de Guerra,” que me deu anos atrás e em cuja dedicatória ele usa as palavras “traductor” e “offerece,” isto em data já posterior à última modificação (a simplificadora lei Médici 5.765, de dezembro de 1971). [Note-se que, neste parágrafo, estou usando mudanças que tiveram lugar em 1943, 1945 e 1971 – será que teria que mudá-lo de novo ? Ah… Ia-me esquecendo: uso também duas palavras grafadas dentro da simplificação proposta em 1911 por Gonçalves Viana, que deveríamos ter aceito e nunca abandonado.]
Ortografia é arbitrário, é normatização, é imposição, ao contrário de língua…
Portanto, o interessante é que coloquem gente que realmetne goste e conheça o idioma para tratar da matéria.
De vez em quando é preciso mesmo dar uma mexida aqui outra ali.
O senso comum diz que uma ortografia unificada poderia melhorar as coisas, dando mais força ao português perante os outros idiomas mais “fortes”, como inglês, espanhol, francês, etc., de países mais fortes economicamente.
Não vejo como uma ortografia unificada vá prejudicar a autonomia cultural, a identidade, dos paises lusófonos.
E de que adianta mesmo deixar a ortografia igual (igual não, parecida) e a sintaxe e o léxico diferentes?
O benefício continua irrelevante comparado ao prejuízo.
Abraço,
Pablo
http://cadeorevisor.wordpress.com
Pedro,
Excente sua exposição, que toca no ponto nevrálgico dessa insana empreitada: a imposição ex vi legis de regras ortográficas é uma estupidez tremenda. Nenhum órgão legislativo deveria se meter a besta de regular um matéria que não é da alçada do poder estatal.
Na minha edição das obras completas de Monteiro Lobato, há uma “ligeira nota sobre a ortografia de Monteiro Lobato” na qual o escritor paulista desce o pau nessa mania do legislador de regular a escrita:
“ Não há lei humana que dirija uma lingua, porque lingua é um fenomeno natural, como a oferta e a procura, como o crescimento das crianças, como a senilidade, etc. Se uma lei institue a obrigatoriedade dos acentos, essa lei vai fazer companhia às leis idiotas que tentam regular preços e mais coisas. Leis assim nascem mortas e é um dever civico ignora-las, sejam lá quais forem os paspalhões que as assinem. A lei fica aí e nós, os donos da lingua, nós, o povo, vamos fazendo o que a lei natural da simplificação manda. Trema!… Acento grave!… ‘Ôutro’ com acento circunflexo, como se houvesse meio de alguem enganar-se na pronuncia dessa palavra!… Imbecilidade pura, meu caro. E a reação contra o grotesco acentismo já começou. Os jornais não o aceitam e os escritores mais decentes, idem. A aceitação do acento está ficando como a marca, a carateristica do carneirismo, do servilismo a tudo quanto cheira a oficial. Eu, de mim, solenemente o declaro, não sou “mé”, e portanto não admito esses acentos em coisa nenhuma que eu escreva, nem leio nada que os traga. Se alguem me escreve uma carta cheia de acentos, encosto-a. Nem leio. E se vem alguma com trema, devolvo-a, nobremente enojado…”
Não fechei a Paulista ainda porque estava esperando a sua opinião… bom, vejo que vc é a favor da unificação… entonces, com tantos argumentos racionais, quem sou eu para causar uma revolução por questões passionais?
Adeus pinguinhos lindos, fofos e charmosos…
Só ainda não sei como pronunciarei “linguiça”, “cinquenta”, “eloquente, “pinguim”… “tranquilo”…
Pode me ensinar?
Talvez o grande nó da questão seja a sensação de que, depois de uma reforma a cada geração, essa aí não parece nem de longe ser definitiva. Vai mudar um pouquinho agora, pra obrigar todo mundo a reaprender a escrever e encher as burras (de dinheiro) das editoras, e daqui a uma geração muda tudo de novo…
Se é pra unificar a orthographia, que se a unifique de uma vez, ou se a deixe assim até isso ser possível.