Foi perfeita a mesa que reuniu Neil Gaiman e Richard Price. Além da qualidade da obra dos dois e da lucidez com que falam dela, acho que algumas questões de formato, digamos assim, ficaram bem claras.
Em primeiro lugar, mesas com três convidados não funcionam. Dois é o número ideal para que cada um tenha tempo de dar o seu recado. Um, se o cara for uma grande estrela, tudo bem. Três é demais.
Segundo: o mediador é mais importante do que parece. Marcelo Tas desempenhou seu papel com rara competência. Conhecia a obra dos entrevistados, mas, nem tímido nem exibido, entendeu que não estava ali para defender uma tese de doutorado, mas para apresentar um pequeno show ao vivo. O timing de televisão ajudou.
Terceiro: a química entre os convidados costuma ter muito de imponderável, mas não precisa ser encontrada em grandes questões políticas ou existenciais. A discussão sobre a técnica do diálogo, por exemplo, bastou para que Price e Gaiman, tão diferentes, encontrassem solo comum suficiente para garantir à mesa uma certa coerência.
“O diálogo real é um pesadelo num livro, como um mau filme de Andy Warhol. Bom diálogo é diálogo falso”, disse Price, jogando uma pá de cal sobre a idéia do escritor como um grande orelhudo atento à “fala das ruas”. Em outro momento, traçou também uma diferença entre o diálogo num roteiro de cinema, formato que já escreveu para diretores como Martin Scorsese e Spike Lee, e num livro. “Lido num livro, o diálogo comporta muito mais eloqüência, um certo tom literário. Num filme, vocês não fazem idéia de como muito pouco ainda é demais”, disse.
Gaiman, também ele autor de roteiros cinematográficos, concordou, e deu à questão uma dimensão numérica de quadrinista que nunca tinha me ocorrido. “Nos quadrinhos você pode usar no máximo 30 palavras por balão, senão aquilo parece estúpido e ocupa espaço demais dentro do quadro”, quantificou. O que, guardadas todas as distâncias, talvez não seja um mau parâmetro para escritores de prosa que estejam precisando dar mais ritmo à conversa de seus personagens.
Cada um fez um aceno para grandes artistas que desbravaram primeiro os caminhos que hoje trilham: Gaiman reconheceu ter aprendido tudo sobre como estruturar um roteiro de quadrinhos com Alan Moore, e Price, mesmo rejeitando o rótulo de “escritor de gênero”, fez um afago em Elmore Leonard ao dizer que “o mais cool” dos escritores americanos tem 85 anos. Foi bonito.
De resto, acho que vale destacar uma frase de Price que tem muito a ver com uma discussão travada aqui anteontem, sobre escritores deverem ou não deverem ter carreiras paralelas. Ao responder sobre a importância do cinema em sua vida, Price afirmou que a relação é meramente interesseira:
“É lá que está o dinheiro. O mais importante que um artista pode comprar é tempo, e é com roteiros que eu compro tempo para escrever meus livros”, disse o autor de “Lush life”, um livro que andou na lista de mais vendidos do “New York Times”.
7 Comentários
Sérgio, essa questão do diálogo na literatura sempre me intrigou… sei que sou apenas um diletante do meio, se comparado à galera do ramo que passa por aqui (você, inclusive), portanto peço perdão antecipado se a dúvida soar muito idiota.
Olha, sempre que eu leio qualquer das Grandes Obras Literárias da História (assim mesmo, com iniciais maiuscúlas, pois elas parecem ter um “peso”, uma pré-concepção de terem que ser lidas como grandes obras que eu não consigo me desvencilhar ao longo da leitura), e várias obras menos afortunadas, me vem logo à cabeça, ao ler os diálogos: “ora, ninguém, mas ninguém mesmo, é capaz de falar assim!”.
Um caso que considerei extremo é o do moleque de “Os Miseráveis” (V. Hugo), que não me lembro o nome, e que tinha, sei lá, uns seis ou sete anos, e que a cada fala lançava mão de comentários recheados de fina ironia, ou então de divagações legitimamente filosóficas.
Tá certo que a fala das ruas possa não funcionar em um livro, mas até que ponto é legítimo fazer com que cidadãos comuns tenham eloqüência de Phds? O desejo de imprimir uma marca “literária” à fala a eleva ou ridiculariza? Como você prefere escrever (sei que vc tem um romance publicado, mas ainda não o li)?
Obrigado pela atenção!
Sérgio, essa mesa que reuniu Gaiman e Price foi a minha favorita até o momento. Concordo com você: Marcelo Tas conduziu o encontro com muita competência. Diferente da maioria dos mediadores, que tem aproveitado o momento para dar um pequeno show pessoal. Ora, as estrelas não são eles, mas os convidados. Abraço
Paulo, o diálogo da literatura do século 19 era muito mais afetado, sem dúvida. Acredito que em parte porque o diálogo real também era mais afetado, mas principalmente por convenção literária mesmo. Hoje os leitores não perdoam mais isso em obras contemporâneas, os ouvidos cobram uma grande verossimilhança. Mas até que ponto isso vai é da arte de cada um, e depende muito do tom geral da obra. Tem diálogo naturalista que soa postiço, diálogo estilizado que funciona, depende do que está em torno. Uma dica que me ajudou muito a escrever diálogos: leia – só leia – todo o teatro do Nelson Rodrigues, uma peça atrás da outra. Demora dois dias, se tanto. No terceiro, você perceberá como seus personagens começam a falar como gente.
Um abraço.
Sérgio, muito obrigado pela resposta! Mesmo!
Ah, o segundo comentário não é meu.
Abs.
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Sergio, adorei essa mesa. Confesso que näo conhecia nenhum dos dois e fiqei muito bem impressionada. Adorei o conto do Neil Gaiman! Também fiquei impressionada com a incrível legião de fãs que ficaram horas na fila para os autógrafos. Achei extraordinário!
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