No momento em que o sol se põe em Paraty, exatamente às cinco horas e trinta e nove minutos, o escritor de sobrancelhas de taturana aparece fazendo festa e pergunta se pode puxar uma cadeira. Pode, claro, sinalizo, dizendo que o café é por minha conta, mas ele explica que cortou esse hábito, a cafeína andava lhe dando tremores nas mãos.
– Quer dizer, talvez a culpa nem seja dela, mas alguém tem sempre que pagar o pato, certo?
O sujeito diz isso erguendo muito as sobrancelhas de taturana, como se a frase tivesse algum sentido maior do que o evidente, uma camada de sabedoria escondida sob a platitude. Não me animo a especular o que tal substrato poderia ser. Ele ergue a mão, que realmente parece um tanto trêmula, para deter o garçom que passa apressado, e pede uma dose dupla de Maria Izabel envelhecida.
– Como é boa a cachaça desta terra, não?
O escritor de sobrancelhas de taturana tem a cabeça lisa feito bola de bilhar, como se seu cabelo tivesse iniciado uma migração para o sul e, detendo-se na divisa inferior da testa, receoso de atravessar a depressão dos olhos, decidido fixar residência ali. Entrelaça as mãos sobre o crânio pelado e se recosta na cadeira, sorrindo.
– Você reparou que em Paraty as estações se alternam num ritmo frenético, né? De dia é verão, de noite é inverno. Ou seja, um minuto atrás era verão, e agora vem esse ventinho gelado como se o Grande Deus Inexistente tivesse decidido ligar o ar condicionado, pode uma coisa dessas? Todo dia a mesma coisa. Quem não tem tempo de voltar à pousada para trocar de roupa faz o quê?
O garçom chega nesse instante com a cachaça dupla, como se os dois tivessem ensaiado esse número.
– Pois é – diz o escritor de sobrancelhas de taturana, erguendo um brinde ao universo indiferenciado. – Quem não tem tempo de trocar o figurino veste um pulôver líquido. Saúde, meu amigo.
Três rodadas depois, o cara diz com voz pastosa que nunca deixou de vir a nenhuma das doze edições da Flip, embora tenha fobia de gente, odeie poetas que abordam os outros na rua, não suporte entrar em fila de restaurante, deplore as pedras irregulares do calçamento e ache esse negócio de falar de literatura uma perda de tempo atroz.
– A literatura só pode ser objeto de dois verbos: escrever e ler. Nessa ordem, claro.
Digo que infelizmente serei obrigado a interromper o papo porque estou atrasado para um compromisso. Não me dou o trabalho de rebuscar a desculpa, que, reconheço, soa estropiada. Como o sujeito parece amuado ao ouvir isso, pergunto numa tentativa de cortesia por que, tendo fobia de gente, odiando poeta de rua, fila de restaurante, calçamento irregular e papo literário, ele nunca deixou de vir a uma Flip sequer.
– Por causa disso – responde, erguendo sua quarta dose dupla de Maria Izabel. Parece acreditar no que diz.
Saio pensando que sim, alguém tem sempre que pagar o pato.
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Muito Bom!
hahahahaah. Excelente!
Boa!