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O escritor que era monge que era escritor

30/10/2006

O relançamento de “O nariz do morto” (Civilização Brasileira, 384 páginas, R$ 44,90), livro publicado em 1970 por Antonio Carlos Villaça (1928-2005), dá à cultura brasileira a oportunidade valiosa de repor em lugar menos folclórico o nome do escritor carioca. Embora esse título, que costuma ser considerado seu melhor, tenha dado início a uma série de volumes de memórias como “O anel” e “Monsenhor”, entre outros, Villaça é mais conhecido – sem que para isso seja preciso lê-lo – como arquivo de anedotas dos bastidores da literatura brasileira do século XX, cuja intimidade freqüentou. Não é que tal juízo esteja errado. Apenas não faz justiça a um grande escritor.

“O nariz do morto” acompanha a vida de Villaça do nascimento à idade adulta, com foco na inquietação espiritual que o levou a tentar a carreira religiosa, internando-se no Mosteiro de São Bento – apenas para sair correndo de lá, trinta quilos mais magro e mergulhado numa crise existencial que o acompanharia pelo resto da vida. Como monge, Villaça – ou Lelento, ou ainda Sigismundo, máscaras que ele vai assumindo ao longo da história – era um poeta. Como poeta, era monge. Nesse descompasso equilibrou sua vida.

O livro foi definido por Carlos Drummond de Andrade, num poema chamado, justamente, “O nariz do morto” (publicado em “Discurso de primavera”), como “duro e triste, machucante”. Confere: Villaça é impiedoso, sobretudo consigo mesmo. “Vivi? Não vivi”, anota, epigramático. Ao contar como “não viveu”, não tem medo de sondar abismos e se chicotear com um rigor ao qual leitor algum pode ficar alheio, pois “a história de todas as vidas é a história de um malogro”. Para que a definição de Drummond fique completa, porém, é preciso lhe acrescentar algo que salta da página, tornando palatável e ao mesmo tempo amplificando essa tristeza: o prazer sensual, pantagruélico (o gordo Villaça apreciava a boa mesa) de uma prosa irresistível, cheia de um humor gauche como o de Carlos e pontuada com personalidade quase idiossincrática. Vem à mente um clichê: Villaça escreve como quem respira. Não é bem isso. Ele escreve mais como quem arfa. E em seus melhores momentos produz páginas de uma densidade poética de tirar o fôlego.

As angústias espirituais e intelectuais de um jovem católico no Rio de Janeiro de meados do século XX podem parecer um tema árido e datado. De certa forma, são. Discutir os méritos relativos dos ensaístas católicos Gustavo Corção e Alceu Amoroso Lima – “a cultura de Corção é mais profunda. A de Alceu é mais extensa, Alceu lê mais. Corção lê melhor” – foi passatempo intelectual de muita gente no Brasil, inclusive, em chave irônica, de Nelson Rodrigues. Mas a verdade é que a geração de ouro dos intelectuais fervorosos, que tinha nomes como Cornélio Pena, Jorge de Lima e Murilo Mendes, não deixou herdeiros de relevo. Isso contribui para que não sejam poucas, para o leitor de hoje, as páginas bocejantes de “O nariz do morto”, especialmente quando Villaça se põe a desfiar suas impressões sobre leituras religiosas que, com a possível exceção de estudantes de teologia, ninguém tem como compartilhar: “…Sertillanges, Gardeil, Garrigou-Lagrange, Mandonnet, Cérissac, Labourdette, Petitot, Philipon, Pègues…”. Tampouco ajuda a engajar o leitor do século XXI a profusão de citações sem tradução, sobretudo em latim e francês, um problema que a edição poderia ter facilmente corrigido.

Não se deve concluir daí que a cultura livresca de Villaça prejudica “O nariz do morto”. Pelo contrário: parte do encanto dessas memórias vem de seu peculiaríssimo protagonista, a quem não falta coragem para se lançar de forma suicida numa vida monástica de sacrifícios, mas que em tantos momentos assume diante do mundo uma atitude de recatada recusa, substituindo a experiência direta pela dos livros: “Eu era tão virginal”, define-se. Villaça é, nesse sentido, uma sombra, um personagem profundamente moderno, com algo de Bartleby metido numa louca saga do espírito. Como o escriturário de Herman Melville, prefere não agir. Lê, isso sim. Observa. Encontra gente interessante, registra-lhes os traços fundamentais, conversa: desfilam pelo livro Manuel Bandeira, Alceu, Graciliano Ramos, um jovem e grave Augusto de Campos. Freqüentemente, porém, o que fica na memória de Villaça não são as palavras e idéias trocadas nesses colóquios, mas um tom, um jeito de corpo que define a personalidade do outro num relâmpago conciso.

Villaça é um brilhante – e malvado – retratista de tipos humanos. No capítulo dedicado ao mosteiro, diz sobre o bispo de Belo Horizonte que “parecia uma foca, também mulato escorregadio, maneiroso, piedade adocicada na celebração da Missa”. Havia “o zelador, Dom Custódio, hoje bispo, nervosinho, nariz de judeu, passo de gueixa…”, além de um certo Dom Hermógenes, “baixinho, gordinho, vermelhinho, engraçadinho, meio pateta, um quase débil mental…”. Sobre Getúlio Vargas, anota: “Timidez e força como que saltavam dele, na plenitude do seu destino. Violência dominada. Ou domada. Havia um não-sei-quê de hipnotizador nesse homem baixinho – mais baixo do que eu supunha, antes de vê-lo, pernas curtas, bunda grande…”. O surpreendente traço anatômico, típico da irreverência cândida do autor, reaparece mais à frente no maior inimigo político de Vargas, Carlos Lacerda: “Quase a mesma bunda grande de Getúlio”.

Mas é no mosteiro, um mosteiro multifacetado que ora se mostra grandioso, expressionista, ora burlesco, que a obra de Villaça soa suas notas mais profundas, mais desesperadas, mais mordazes: “O mosteiro frio, austero, longe de mim, mosteiro monumental, de pedra, patrimônio histórico. Eu, de carne”. Olhando o coro dos monges cantores, o autor embarca num delírio em que os vê – e se vê – como “simples tubos em que se dá a passagem, como num túnel, de legumes, verduras e carnes, leite e água, vinho, verdade e mentira, um túnel, sua entrada e sua saída, um túnel vertical, padecente, caminhante, pensante, falante, sorridente, decadente, morrente. Tubo digestivo, boca e ânus”.

Então, num grande momento de humor filosófico, os tubos se dirigem ao céu: “Vi que éramos afinal uns pobres, uns diabos, uma coisa pífia, ronronante, ventres sentados, ajoelhados, ventres de pé – falando latim com Deus”. A fé de Villaça balança nessa hora, como em tantas outras, embora não chegue a cair: “Eu achava aquilo cada vez mais esquisito. Não afirmava, não negava. Achava esquisito. Era um direito que eu tinha, não era?, achar esquisito, eu não duvidava. Eu achava esquisito. Aquilo era esquisito. O que é que era esquisito, meu filho? Aquilo, seu filho da puta”. Assim oscila sua vocação: apenas o suficiente para que o ex-futuro monge vire, na plenitude da palavra, um escritor.

Esta resenha foi publicada no “Estadão”.

5 Comentários

  • Marcelo Moutinho 30/10/2006em11:34

    Li um belo livro de contos do Vilaça, mas não me recordo do nome. Lembro da precisão

  • Marcelo Moutinho 30/10/2006em11:34

    narrativa dele…

  • Paulo 30/10/2006em12:32

    belo texto.

  • Jonas 31/10/2006em12:15

    Muito bacana o texto mesmo.

  • Rogge 06/11/2006em18:17

    “Tubo digestivo, boca e ânus”.

    Mas que sofre, que caminha, que pensa, que fala, que sorri, “decadente, morrente”. Quando se perde a dimensão do transcendente, e se reduz o homem a um tubo, ( o que, basicamente, é), chega-se ao fundo do poço. Preciso ler esse livro para ver como Villaça resolveu essa questão, se é que conseguiu resolvê-la. Sua vida interior não deve ter sido fácil. Prevejo uma leitura fascinante.