“O espírito da prosa – uma autobiografia literária”, de Cristovão Tezza (Record, 224 páginas, R$ 34,90), é um livro corajoso e único no cenário brasileiro: um longo ensaio em que um ficcionista de sucesso reflete sobre sua formação, sonda motivações ocultas, esmiúça referências, defende teoricamente suas escolhas no quadro histórico da prosa de ficção e, ao mesmo tempo, expõe as próprias dúvidas e pontos fracos com franqueza desconcertante.
Ex-professor universitário e estudioso do linguista russo Mikhail Bakhtin, Tezza não facilita as coisas para o leigo menos ligado no tema: nem tanto pela linguagem – “Este não é um trabalho acadêmico”, avisa na primeira frase do livro – quanto por um tom singularmente fervoroso, “O espírito da prosa” dirige-se a um leitor no mínimo apaixonado por literatura.
No trecho abaixo, depois de destroçar os três primeiros livros que escreveu – e que nunca publicou –, Tezza faz uma defesa enfática de algo que grande parte da inteligência literária brasileira tem gostado de tratar como defunto, muitas vezes com a superficialidade apressada de quem já não precisa reafirmar o óbvio: a ficção realista e seu lugar único, que obviamente não é o de uma linguagem em que o autor insufle uma verdade superior, mas o de um cruzamento impuro de linguagens.
“No conceito, tudo é objeto”, diz Tezza, atacando a ideia mais prezada pelos coveiros da arte narrativa. “Seres intercambiáveis, não estamos mais em lugar algum. Há quem ache isso interessante. Uma espécie de militarização da arte – soldados têm funções, não personalidade. O que cria um duplo fracasso do que seria uma prosa conceitual. Ou ela se realiza como conteúdo traduzido, a maldita mensagem, ou, a hipótese eventualmente melhor, como a demonstração fria de uma técnica. Tirou-se dela o componente da experiência do sujeito, ou a sua empatia, como a chave medular da arte literária.”
Tezza já havia feito uma espécie de defesa prática desse ponto de vista com o romance “O filho eterno” (2007), que pela superação triunfante do dilema “literatura séria” x “literatura comercial” está entre os grandes livros deste século no Brasil. Agora vem a teoria.
Eu havia determinado uma corrente “séria” da minha literatura e do meu projeto de escritor, à qual pertenciam meus romances gorados. O primeiro fracasso, antes mesmo de considerar a visão de mundo e a orientação ideológica de meus textos, era evidentemente técnico. O que se chama difusamente de “realismo”, às vezes com a ligeireza de quem se refere irônico a velheiras descartáveis, tem uma exigência técnica refinada, que filia cada frase que se escreve a uma tradição poderosa, da qual quem quer que se meta a escrever, queira ou não, é caudatário. Fazer um personagem se levantar da poltrona, dar cinco passos inseguros através de uma sala na penumbra, e, com medo, abrir uma porta, não é jamais um trabalho simples. Qualquer candidato a escritor de língua inglesa sabe disso. Antes mesmo de escrever a primeira palavra, o bom narrador de herança realista sabe onde “colocar a câmera”, por assim dizer; sabe estabelecer o olhar que redesenha o mundo para partilhar uma experiência necessariamente ambígua no quadro de uma hipótese literária.
Mas, por um desses mistérios da história, criou-se por aqui, nos estamentos intelectuais de prestígio, especificamente no Brasil, como uma sombra residual do clássico escapismo português, uma enraizada aversão à narrativa de raiz anglo-saxônica; uma aversão, aliás, que viceja curiosamente entre os escritores e críticos, mas não entre os leitores, aliás muitas vezes os mesmos juízes antirrealistas, que consomem de Jane Austen a J.M. Coetzee, de Philip Roth a Ian McEwan, com o imenso pacote histórico-realista que vem junto, em abundância e invejável deleite. Nem o fato de Machado ter bebido profundamente dessa tradição inglesa, para dela extrair e amadurecer o peso de sua visão de mundo, resultou em alguma consequência. (Tudo que lembramos é Laurence Sterne, como se Machado, ao lê-lo, estalasse os dedos, gritasse “heureca!” e se transformasse imediatamente em outro escritor.) A nossa corrente “poética”, por assim dizer, foi sempre muito mais forte, desde que a obra de José de Alencar fundou a narrativa brasileira, dando-lhe a sua pauta ideológica e seu repertório estético. Na literatura, somos muito mais o país das Iracemas que o país das Capitus.
Onde colocar a câmera: há um eixo do olhar narrativo que toma a si mesmo como referência séria (isto é, axiologicamente não relativa), em torno do qual o mundo se organiza, estabelece valores (valor no sentido completo, da tábua moral da sociedade à escolha ética do indivíduo, com tudo que germina entre uma coisa e outra), e uma voz generosa, que não se confunde com a voz do autor, mas dele se destaca para lhe dar perspectiva, que é a essência do espírito da prosa.
Corre uma ideia grandiloquente, e repetida sem pensar pela inércia crítica da aparência, de que o romance derivou da epopeia; e a tradição de entender a narrativa como, basicamente, uma mera costura de trama fez essa ponte falsa mas suave. Bakhtin lembra que será bem mais produtivo procurar a origem da prosa romanesca nos diálogos de Platão, a partir do próprio conceito de diálogo; nele, a narrativa encontra sua razão de ser, justifica sua existência, pelo enfrentamento de pontos de vista ativamente conflitantes. Mais que isso, há no diálogo clássico a pressuposição de um homem inacabado vivendo um momento presente ao qual tem de dar uma resposta. A elevação, e o seu poder mavioso de apagar a diferença por mais brutal que seja, elevação que é a alma do espírito épico, na prosa tem um limite intransponível – a prosa romanesca precisa desesperadamente do chão, e de sua linguagem menor, para respirar.
Voltando ao chão: a minha pretensão de domínio realista, tomada de empréstimo do mar de leituras europeias e americanas que eu fazia e que elegia como referência e preferência, esbarrava não só na minha incompetência ou imaturidade técnica, a frase capenga, o homem que se ergue da poltrona e parece incapaz de atravessar uma sala e abrir uma porta sem antes se perder, barroco, na desimportância arrogante de seus sonhos poéticos, os passos cheios de pose e palha; não era apenas uma questão técnica, a técnica que fazia babar os imitadores de Hemingway, a ideia simplista de que a frase curta e elíptica, aquele jeito blasé de quem está cansado de guerra neste mundo absurdo e sem sentido, seria apenas um domínio avulso e lapidar da palavra, objeto de admiração ornamental; imagina-se que é só técnica o que de fato é o resultado de uma civilização inteira que se revela e respira pelo texto.
Sim, comemos de tudo, antropófagos, como queria Oswald de Andrade, mas a digestão literária é pesada e excruciante. O espírito do realismo não é uma técnica da frase nem o fantasma herético, ou apenas ridículo, de um narrador onisciente caçado sem tréguas pelo sentimento crítico retromoderno; é uma visão de mundo, um pacote inteiro de representação da realidade que pressupõe o poder máximo da prosa, um homem incompleto e desenraizado, e, enfim, uma viva cultura urbana (e todo o sistema de valor que lhe é correlato).
5 Comentários
Obrigado por postar isto aqui, Sérgio. É muito bom que esse livro do Tezza esteja saindo. A cultura brasileira precisa não só desse tipo de teoria destemida, mas desse tipo de publicação mesmo. Eu moro nos EUA há 5 anos e o seu blog é um dos poucos lugares que uso para me atualizar sobre o que acontece aí. Muito bom trabalho!
Obrigado, Cole. Um grande abraço.
Fantástico esse trecho. Estava curioso com esse livro, agora vou correndo comprá-lo. Há uma carência de estudos sérios sobre o realismo. Não o realismo como estilo de época, mas no sentido “auerbachiano” de tentativa de agarrar alguma coisa concreta sobre a existência. O final do trecho é arrebatador: “O espírito do realismo não é uma técnica da frase nem o fantasma herético, ou apenas ridículo, de um narrador onisciente caçado sem tréguas pelo sentimento crítico retromoderno; é uma visão de mundo, um pacote inteiro de representação da realidade que pressupõe o poder máximo da prosa, um homem incompleto e desenraizado”.
Rancière (muito bom), James Wood (meia bomba), etc. Como não há estudos sérios sobre o realismo?
Achei só engraçado que o Tezza fale que o Barthes disse que escrever é intransitivo. No artigo “Escrever: verbo intransitivo?”, o Barthes escreveu justamente o contrário! Está lá: “Nenhum escritor, qualquer que seja sua época, pode ignorar que sempre escreve algo.” Achei descuido do Tezza falsificar assim a posição de um teórico a que ele se contrapõe.
O Espírito da Prosa | Imperdível - VEJA.com
Sérgio Rodrigues,
Apreciei muito a resenha que você fez sobre O Espírito da Prosa, livro que li, aliás, o terceiro, depois de O Filho Eterno e Um Erro Emocional. Tal como uma outra resenha que li sobre o livro, creio que a sua seja mais uma dentre outras que o próprio Tezza gostaria de ler sobre seu livro.
Cheguei a fazer um comentário sobre o Espírito da Prosa, através da Página de contato do escritor mas, infelizmente, o texto não foi acolhido e se perdeu em minha tentiva de enviá-lo.
Parabens pela sua resenha.
Assis Utsch (autor de O Garoto Que Queria Ser Deus – http://www.ogaroto.com.br )