Leio em minha tela, no espaço de alguns dias, uma entrevista de Philip Roth em que o escritor americano repete sua ladainha de que a cultura literária chegará ao fim em poucos anos, assassinada pela cultura digital e pelo fascínio que as novas gerações sentem por engenhocas eletrônicas; um artigo da Salon.com em que os escritores Josh Weil e Mike Harvkey refletem com humor sobre a diferença entre o tratamento de astros do rock que os escritores da geração de Roth recebiam de editores e leitores ao viajarem para promover seus lançamentos e o esqueminha pobre e familiar que impera hoje; a notícia de que o Facebook vai combater a proliferação de chamadas caça-cliques, que substituem a apresentação minimamente honesta do assunto por uma provocação marota que sempre promete mais do que entrega; e uma infinidade de certezas antagônicas e inabaláveis expostas com agressividade nas redes sociais sobre todos os assuntos do mundo, em especial a campanha eleitoral brasileira. Em resumo: rotina, nada além de rotina.
Como a dispersão da internet não é brincadeira, leio muitas outras coisas em minha tela nesses mesmos dias. Inclusive a notícia absurda de que a criadora da personagem infantil Hello Kitty negou que ela seja, como parece, uma gata (afinal, anda ereta e não de quatro, o que necessariamente faz dela uma menininha!), ignorando assim os bigodes fartos da figura, a longa tradição de bichos antropomórficos da cultura pop e o princípio saudável de que autores, azar o deles, não detêm a palavra final sobre o modo como suas criaturas são compreendidas. O fato é que a ridícula polêmica da Hello Kitty não ficou comigo por mais de cinco minutos, ao contrário dos itens listados no parágrafo acima, que só à primeira vista dão razão, em sua miscelânea errática, à visão sombria de Philip Roth sobre o fim da cultura literária e, junto com ela, da exigência de que os pensamentos se encadeiem de forma lógica e persistente para chegar a algum lugar (cultura escrita), em vez de saírem em revoada para todos os lados ao mesmo tempo (cultura digital).
O desenho que a superposição dessas leituras zapeantes riscou em minha cabeça é um claro-escuro. A cultura literária como Philip Roth a conheceu está sem dúvida com os dias contados, mas ele logo estará morto, e o mundo continuará a ler. Algo parecido pode ser dito do desconforto crescente que sinto diante da enxurrada de opiniões, provocações, dogmas, preconceitos e demonstrações de vileza canalizados todos os dias pelas redes sociais, uma espécie de esgoto a céu aberto que é a marca mais forte da cultura de nosso tempo e que, sendo assim, não vai passar tão cedo – mas eu vou, e o mundo continuará a produzir seus rios de chorume e também a desafiar os que insistem em recortar sentidos na cacofonia.
Sempre que encontro uma visão apocalíptica como a de Roth e sinto a tentação (quem, já tendo passado dos quarenta, não sente?) de lhe dar razão, lembro-me de uma frase escrita em fins do século XVII pelo francês Adrien Baillet, biógrafo de René Descartes. Escandalizado com a explosão da indústria livreira e com o excesso de pessoas dispostas a consumir os volumes que ela cuspia no mercado em ritmo crescente, obedecendo a uma lógica puramente comercial, sem preocupação com a qualidade de conteúdo e forma, o sensato Baillet deu uma de profeta maluco: “Temos razões para temer que a Multidão de Livros que aumenta a cada dia (…) faça cair os séculos seguintes num estado tão lamentável quanto aquele em que a barbárie lançou os anteriores a partir da decadência do Império Romano”.
Sensacional, não? Troquem-se, na equivocadíssima frase do erudito francês, os livros pela internet: Philip Roth assinaria embaixo. Agora discrimine-se, dentro da internet, o redismo social – eu mesmo ficaria tentado a assinar. No fim das contas, o que mexe com Baillet, com Roth e comigo é a vontade de, no meio da gritaria do mundo, gritar mais alto para que nos ouçam. Nada muito diferente da tentação da chamada caça-clique, que busca a atenção momentânea do leitor, mesmo que para isso tenha que distorcer ou simplificar demais um quadro complexo. Nada muito diferente também do espírito das certezas de aço que, neste tempo riquíssimo em incertezas, são esgrimidas 24 horas por dia nas redes sociais por quem teme acima de tudo o silêncio e a ponderação. É claro que reconhecer essa sinuca de bico não obriga ninguém a aderir, bobo-alegremente, ao novo pelo novo, mas apregoar o fim de qualquer mundo será sempre a projeção patética da finitude do próprio arauto do apocalipse.
9 Comentários
Quem, como eu, é um aficionado pelo xadrez, conhece a história do grande mestre cubano Jose Raul Capablanca, campeão mundial da arte de Caissa entre os anos de 1921 e 1927. Capablanca foi um gênio, se alguma acepção de gênio foi um dia corretamente atribuída ao humano, como nos casos de Mozart, Einstein ou Michelangelo. Pois no fatídico novembro de 1927, numa Buenos Aires que já tinha algo de Borges, Capablanca sucumbiu a outro gênio, um russo de nome Alexander Alekhine. Pois, logo após a derrota, Capablanca decretou o fim do xadrez. Sugeriu, não sem provocar reações que oscilaram entre o espanto e a condescendência, que duas colunas e duas fileiras deveriam ser acrescidas ao quadrado labiríntico do tabuleiro, onde oito peças mais duelariam até a morte. A ideia não prosperou. Capablanca durou mais 15 anos e o jogo sobreviveu e floresceu nas mãos dos russos, de Bobby Fischer, de mais russos, de Kasparov, dos computadores, de outro russo, um indiano, de mais um russo, até chegar aos dias de hoje. Moral da história: a finitude da obra humana é mais a finitude do humano do que da obra. Enquanto formos humanos…
Que susto ontem com o seu xará, puxa vida. Não que eu não lamente, evidente.
Obrigado pela mensagem, Thiago. Conheci o Sergio ano passado, uma figura doce, além de brilhante no que fazia. Tristíssima perda. Um abraço.
Na minha modesta opniao (desculpe a falta de acento – escrevo dos Estados unidos) as novas tecnologias so’ ajudam. No caso dos escritores, por aqui ha’ um inundacao de novas autores publicando diretamente na Amazon, Nobles, Apple. Outro dia li o resumo de um que passa no Brasil – The Enterprise – C.S. Burton. Achei interessante um autor americano escrevendo sobre o nosso Brasil, algo que nunca vi no “circuito” normal. Quando tiver mais tempo para ler talves em compre (ou espero pelas promocoes – as vezes e’ de graca.
É uma insanidade afirmar que a cultura literária chegará ao fim, em poucos ou muitos anos. Ela permanecerá presente na vida dos humanos enquanto existir imaginação, sede de saber e necessidade de entretenimento – inclusive assimilando “o fascínio que as novas gerações sentem por engenhocas eletrônicas”.
Veja só se Livro vai acabar? Quem “guenta num fim de semana, após semana árdua de máquina da besta para todo lado e entranhas,ler sem aquela es ticada num sofá, folheando aqui e ali, um “livro de verdade”. Livro sim. Aquelas folhas de papel entre os dedos, onde olhos e mãos são cúmplices entre uma esticada de perna e coisa e tal…
Ler no papel entre os dedos, torna a leitura bem mais literatura. E vem rabiscos nos momentos especiais. E dobrar orelha para ir pegar um cafezinho…
Ah… os livros…
Quem se atreveria a abandoná-los?
Só mesmo os amigos da “besta” – esta “máquina doida” que jamais está de bem com nossa mania de ler páginas e páginas… de papel cheiroso.
Veja só…
Acabar os livros…
Coisa de bestas!
Sérgio, você é bom no que faz. Parabéns. Keep writing.
Mais um texto seu brilhante, meu caro. Há intelectuais que teimam em dizer que o rebanho está cego. Se está cego, esses mesmos intelectuais se propõem a, gentilmente, conduzir o rebanho. Se o rebanho ainda sim resiste à condução, então o intelectual não apenas conclui que o rebanho está cego, mas que o rebanho está moralmente corrompido. No fundo, Phllip Roth e tantos outros não se conformam com o fato de as escolhas do rebanho não os contemplarem como líderes.
Obrigado, Aurélio. Grande abraço!
Os livros represetam a indiviidualidade de seu criador
Qualquer um pode divulga seus pensamentos em um livro
Isso faz com que haja a descordancia entre pessoas
Dificil é a concordancia entre seres humanos
Ja estamos no tempo da tribulação
Sei que o foco agora é outro …